Certa vez, um importante político paranaense definiu o filósofo e psicopedagogo Fernando Gois, 47 anos, como um "pé-de-chinelo". Sem perceber, acabou lhe fazendo um elogio. O que esse ex-monge carmelita e fundador da Casa dos Meninos de Quatro Pinheiros, em Mandirituba, instituição voltada para crianças e adolescentes abandonados (leia ao lado), mais se esforça para ser nessa vida é, digamos, um pé-de-chinelo. Propósito que vai muito além de ser um usuário incondicional de surradas sandálias de borracha. Fernando escolheu os pobres. Identifica-se com eles. Seu projeto de vida é o pesadelo de 99% da população brasileira. Em vez de uma aposentadoria confortável de frente para o mar, quer morar na rua. Melhor: voltar a viver na rua.
Gois entrou para a "confraria de São Francisco" muito cedo. Filho de retirantes sergipanos, mas nascido no interior de São Paulo, foi criado na roça, "com o essencial", como define. Mas desaprendeu, ganhando seu passaporte para a era dos excessos. Na adolescência, entrou para o seminário carmelita, no qual conheceu o conforto e o desconforto em doses torturantes. Certos privilégios do claustro lhe causavam aquele "mal-estar da civilização" do qual hoje pouco se fala, o que só fez aumentar à medida que avançava rumo ao sacerdócio.
Nos atribulados anos 80, quando conheceu o trabalho de dom Helder Câmara, em Recife, e passou a ser simpatizante da Teologia da Libertação, a inadequação de Fernando ao ambiente religioso deu um berro. Quase levou seus superiores a queimarem os hábitos. Em vez de discurso de "padre de passeata", Fernando revelou-se um espécime raro: o radical não-violento, um Mahtama Gandhi versado em Marx e em Leonardo Boff. Como não ficou só na ameaça, o rebelde que queria ser padre começou a colecionar experiências que gente estudada só conhece da boca para fora. "Era a teologia da enxada", lembra. Trabalhou como bóia-fria, varredor de rua, cortou grama e morou embaixo de marquises. A essa altura de sua inserção, aparecia no convento de vez em quando porque sua casa quando tinha era um barraco de zinco sem telhado numa favela da Vila Lindóia, Fanny ou Vila Verde.
O desligamento dos carmelitas era só uma questão de tempo. Veio em 1988, mas nem com febre de 40 graus alguém deixaria de ver em Góis um religioso registrado em cartório. Curiosamente, longe das obrigações ditadas pelos votos de castidade, pobreza, obediência e pela vida comunitária foi cada vez mais abraçando o despojamento como estranha forma de vida. Seus modelos não deixam dúvida sobre onde quer chegar: de um lado, o humanista francês Charles de Foucauld (1858 1916), inspirador da congregação religiosa "irmãozinhos de Jesus", cuja missão é inspirada no Jesus filho do carpinteiro além de pobre, era anônimo. De outro, o suíço Frédy Kunz (1920-2000), ou padre Alfredinho, fundador da Irmandade do Servo Sofredor.
Para que se tenha uma idéia, Kunz que chegou ao Brasil em 1968 e fez trabalho pastoral em Crateús, no Ceará teve uma grande alegria aos 75 anos: pôde, finalmente, livre das obrigações apostólicas, integrar a estatística dos sem-teto do país. Só desistiu do sereno quando estava com morte anunciada e foi recolhido para seus últimos dias numa favela. "Tudo o que padre Alfredinho tinha cabia numa mochila", elogia Fernando, com a empolgação de um adolescente diante de um ídolo de futebol.
Conversa vai e vem, ele meio sem jeito confessa que quando for novamente cumprir sua missão na calçada, nem de uma mochila vai precisar. Na Casa dos Meninos de Quatro Pinheiros, criada em 1991, Fernando não tem sequer um quarto. Divide o alojamento com os adolescentes que vivem na chácara. Quando precisa de descanso já que o atendimento é 24 horas procura abrigo no Mosteiro das Beneditinas, a dez quilômetros dali. Vai lá para rezar. A essa altura, o nó na cabeça já está dado. Por que o homem que há duas décadas trabalha no resgate de crianças e adolescentes quer viver na rua? Por uma questão mística. E não se discute Fernando pertence à linhagem dos bem-aventurados os pobres de Francisco a Foucauld, sem escalas. Amém.
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