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Dois projetos de lei conflitantes sobre o chamado "passaporte da vacina" ou "passaporte sanitário" estão em tramitação na Câmara dos Deputados. Um deles prevê a criação de um documento para permitir somente a pessoas vacinadas contra a Covid-19 ou com teste negativo a circulação em locais com restrição de acesso, enquanto o outro quer multar estabelecimentos que discriminem pessoas não vacinadas.
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A proposta de adoção em âmbito federal de um “certificado de imunização” – como aqueles que já vigoram em capitais como São Paulo e estados como Amazonas, Ceará e Espírito Santo –, de autoria do senador Carlos Portinho (PL-RJ), foi aprovada pelo Senado em junho e enviada à Câmara, onde foi apensada a outro projeto parecido, o PL 4.998/20. Em julho, o requerimento de urgência para a votação sobre o passaporte da vacina foi rejeitado pelos deputados em votação apertada.
Mas o projeto continua em tramitação pelos prazos normais e, no dia 30 de agosto, foi tema de audiência pública na Comissão de Seguridade Social e Família. A deputada Chris Tonietto (PSL-RJ), que pediu a audiência, disse no requerimento que o projeto pode dar ensejo “à criação de 'castas' na sociedade brasileira, a saber, a casta dos vacinados, que terá total liberdade de ir e vir, e a casta dos não vacinados, a serem tidos como uma espécie de cidadãos de última categoria".
Esse argumento, aliás, foi o que deu ensejo à apresentação, na semana passada, de um projeto de cunho totalmente oposto, cujo objetivo é evitar a discriminação de pessoas não vacinadas. O PL 3.281/21, de autoria do deputado Junio Amaral (PSL-MG), prevê a aplicação de multas para quem “tratar de forma desigual pessoas vacinadas e não vacinadas, assim como discriminar pessoas não vacinadas”.
O projeto é apoiado pela ala governista, mas sua tramitação deve encontrar mais barreiras que a do PL 4.998. “Tenho ciência de que isso encontra certa resistência, até porque a maior parte da mídia faz uma pressão muito contrária a esta ideia. A gente vive um momento em que o politicamente correto abraçou esta discriminação contra não vacinados, mesmo sendo algo descabido, absurdo, de cunho totalitário. Mas, mesmo sabendo da dificuldade, a gente tem que tentar”, afirma Amaral.
Ainda assim, na visão dele, a pressão popular poderá jogar a favor do projeto. “O mais difícil é levar para a votação. Levando, eu creio que, até pela pressão da população – até de alguns vacinados –, creio que isso (a vitória no Plenário) é mais fácil do que a própria conquista de levar para votação”, avalia.
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Testagem será alternativa para quem não quiser se vacinar, argumenta Portinho
Autor da proposta aprovada no Senado, Carlos Portinho explica que o texto de seu projeto foi baseado em um documento semelhante aprovado pelo parlamento da União Europeia. “A iniciativa foi validada por diversos setores – de evento, cultura, esporte, turismo… – como meio de abertura responsável da nossa economia. Foi aprovado por unanimidade no Senado na mesma semana em que a União Europeia aprovou o dela”, diz.
A ideia é a criação de um documento digital em que o certificado de vacinação e o certificado de testagem possam ser apresentados alternativamente – isto é, pessoas não vacinadas poderiam recorrer também à testagem para entrar em locais que exigissem o documento.
Segundo Portinho, o próprio Executivo – por meio dos ministérios da Saúde e do Turismo – foi inicialmente receptivo à ideia do passaporte da vacina. “Eles apoiaram o projeto. O Ministério da Saúde inclusive atualizou o ConectaSUS para incluir o QR code e a tradução para outras línguas. A gente já tem a ferramenta. Falta apenas a legislação que embase seu uso”, diz.
Posteriormente, no entanto, o presidente Jair Bolsonaro se posicionou contra a proposta. “Infelizmente, depois da aprovação no Senado, o presidente, talvez mal aconselhado, e ignorando o texto da lei, disse que vetaria o projeto, por acreditar que ele obrigaria a vacinação. E em nenhuma linha o projeto obriga a vacinação, tanto é que ele permite a testagem negativa como meio de prova”, diz.
O deputado Diego Garcia (Podemos-PR), que tem atuado contra a aprovação do passaporte da vacina em território nacional, critica o argumento sobre a possibilidade da testagem como alternativa à vacinação. Ele aponta a dificuldade de acesso aos exames – o RT-PCR (molecular), por exemplo, pode chegar a custar até R$ 200 – e o fato de o teste ser especialmente incômodo para algumas faixas etárias. “Será que ele já viu o trauma para as crianças, por exemplo, fazerem teste de Covid?”, questiona Garcia.
Temor geopolítico também está envolvido no pleito contra passaporte da vacina
Deputados contrários ao passaporte da vacina argumentam que ele fere o direito fundamental da liberdade de locomoção, discrimina pessoas que temem tomar a vacina por conta de eventuais efeitos colaterais e cria uma espécie de “apartheid” em território nacional.
Mas, além dessas preocupações, também há um temor geopolítico envolvido no pleito dos parlamentares. Alguns deles acreditam que o passaporte da vacina faz parte de uma estratégia de controle social em escala global.
É esse o temor manifestado por Hermes Rodrigues Nery, especialista em bioética e coordenador nacional do Movimento Legislação e Vida. Nos últimos meses, ele e seu grupo tiveram reuniões com parlamentares de todo o país para explicar essa preocupação, como as deputadas Bia Kicis (PSL-DF), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, e Chris Tonietto (PSL-RJ), que convidou Nery para uma audiência pública na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) em agosto.
“Desde a primeira hora, quando o requerimento de urgência foi votado na Câmara, a gente fez uma forte mobilização. Temos grupos em todos os estados do Brasil. Levando informação para os deputados, a gente conseguiu o empate de 232 votos a favor e 232 contra. A gente evitou que o passaporte sanitário fosse votado em regime de urgência”, relata o professor.
Durante a audiência na CSSF, Nery afirmou que o passaporte da vacina “é a iniciativa legislativa que pavimentará o novo totalitarismo, em curso, atendendo assim as exigências de um estado mundial de controle sobre as pessoas, sem precedentes na história”.
Para ele, o novo documento “enrijecerá mecanismos de controle sobre as pessoas”. “Começa com o controle da mobilidade, mas depois virão outras restrições, para um adestramento e segregação – como num 'apartheid sanitário'”, disse.
Em breve, Nery discursará em nova audiência pública na Câmara, desta vez na CCJ. Além disso, o movimento que ele coordena está participando de audiências públicas em câmaras municipais e assembleias legislativas estaduais. “Estamos com um cronograma, uma meta, de ir a audiências públicas em todas as assembleias legislativas do Brasil, em todos os estados, e vamos procurar ir a audiências públicas em câmaras municipais, pelo menos nas capitais”, afirma.