O Marcelinho da US Alvorada
Marcelo Ariovaldo Porcino, 39 anos, pode se orgulhar de ser o homem mais conhecido do Bolsão Audi-União. Pequenino e dado a longos discursos -- sempre com a voz baixa e abafada de quem conta segredos -- ele entra a cada mês em pelo menos 250 casas da ocupação, o que lhe garante parte da popularidade. Marcelinho, como o chamam, há nove anos é agente comunitário da Unidade de Saúde Alvorada.
A outra parte da fama ganha com caridade. O bottom no crachá diz "Sou voluntário". Não é propaganda enganosa. Quase todas as noites, depois de bater perna pelas ruas poeirentas das vilas, Marcelinho bate cartão na Escola Municipal Maria Marli Piovezan, onde desenvolve atividades esportivas com crianças e adolescentes; e com adultos que participam do programa Educação de Jovens e Adultos, o EJA. Calcula atingir 180 pessoas no total. "Com a UPS, até as mães vêm às aulas noturnas".
Os diagnósticos do agente para o bolsão são quase matemáticas. Acredita que 75% das necessidades das crianças estão cobertas; que 50% dos adolescentes das vilas são assistidos; e que a maior necessidade para os jovens e adultos são os programas de geração de renda. "Quando chega ao ensino médio, filho não quer que pai leve na porta da escola. Ali a moçada começa a ficar vulnerável".
Quanto à violência -- confidencia: o maior medo dos moradores é que seus filhos sofram abuso sexual, um medo típico de lugares em que os pais têm de deixar os filhos em casa para ir trabalhar. E que, por enquanto, a cruzada contra a violência ainda está na fase do gato e rato. "Quando um chega, o outro sai", avalia Marcelinho, para bons entendedores.
A Lisiane da escola municipal
Impossível esquecer. Dia 1.º de março deste ano, quando a primeira Unidade Paraná Seguro, a UPS, foi instalada no bairro do Uberaba, o chão tremeu na Escola Municipal Maria Marli Piovezan -- na qual estudam cerca de 780 alunos, em três turnos. Um helicóptero da PM pousou no pátio do colégio, atiçando o que a diretora Lisiane Gastaldim, 34 anos, considera sua característica mais forte: "Sou metida", brinca.
Daquele dia em diante, qualquer movimentação envolvendo ações da PM, lá estava ela, a postos, para saber de tudo. Tem seus motivos. Fundada no início dos anos 2000 -- e com sede nova a partir de 2004 -- a escola Maria Marli ganhou importância na região, mesmo atendendo na maioria alunos e 1.ª a 5.ª séries. As razões passam pelo portão, sempre aberto para que líderes comunitários possam interagir com os professores e alunos.
"Tudo o que acontece nas vilas repercute na escola", explica Lisiane. Na época da chacina, em 2009, quando oito pessoas foram mortas, o medo da rua se refletiu no comportamento dos alunos. Foi preciso paciência. Com a implantação da UPS, a instituição virou ponto de apoio para a PM. "Não saio daqui antes das 22 horas, por causa da movimentação. As crianças se assustaram. Elas acharam tudo aquilo muito ameaçador. Tínhamos que nos envolver para explicar o que acontecia". A propósito, em julho-agosto deste ano, quando a criminalidade voltou a crescer, com cinco homicídios: "Quinze alunos deixaram a escola. Suas famílias, intimidadas, foram embora da região", comenta.
É dentro da escola, também, que a diretora vê os primeiros resultados. Hoje tem 100 inscritos nas turmas noturnas de Educação de Jovens e Adultos, a EJA. O aumento e a permanência no curso, acredita, se deve à tranquilidade na hora de voltar para casa. Não há mais pilhas de terra trancando ruas e impedindo a passagem da polícia -- uma estratégia típica dos tempos do horror no Audi-União.
A irmã Claudete do Recanto Feliz
"Irmã, tem um homem morto na rua. Mataram ele?" A pergunta de uma das crianças do Centro de Educação Infantil Recanto Feliz não sai da cabeça de sua coordenadora, a freira Claudete Frighetto, 45 anos. Mesmo pequenas, diz ela, as crianças refletem o que vivem em casa e no bairro. "E mesmo para nós, adultos, é muito difícil entender o que acontece aqui."
O centro é mantido pelas irmãs de Santa Úrsula Ledóchowska, instituto religioso fundado na Polônia. Florido e bem cuidado, contrasta com a falta de jeito da ocupação, da qual, mesmo diferente, tornou-se parte. O trabalho pastoral no Bolsão Audi-União teve início em 2002, com visitas às famílias. No ano seguinte -- com a ajuda de benfeitores -- a congregação amealhou cinco terrenos e construiu uma creche. Nos fundos, uma casa para três irmãs. Elas moram na Vila União Ferroviária. Da janela da sala ou do tanque, nesses anos todos, elas assistiram muitas cenas de miséria, e principalmente a violência dos despejos.
A instabilidade dos moradores, conta irmã Claudete, reflete diretamente no trabalho religioso. De repente, uma criança e seus pais, acompanhados pelas religiosas, mudam para outro bairro, interrompendo o acompanhamento. Os reassentamentos, diz, reduziram o nomadismo. Ponto a favor: depois de uma década de bolsão, as ursulinas, como são conhecidas, finalmente conseguem reencontrar os donos nas suas casas e suas crianças por meses seguidos, sem que tenham se mudado às pressas.
Em tempo. O Recanto Feliz é um dos oásis do Audi-União. Simples, mas bem cuidado, rouba os olhos de quem chega com o grande armário no qual as crianças põem seus casacos e mochilas. Tudo na mais perfeita ordem. No jardim dos fundos, balanços, flores e um flagrante. Voluntárias da Pastoral da Criança fazem a pesagem dos alunos.
A Rosalina da Pastoral da Criança
A mineira Rosalina Maria de Souza, 60 anos, se mudou para o Jardim Alvorada antes da enchente de 1995. O episódio foi um marco. Durante 15 dias, a recém-chegada prestou ajuda incessante àqueles que tinham menos que ela. A experiência lhe incentivou a iniciar o trabalho que faz até hoje no Bolsão Audi-União, com a Pastoral da Criança. A balança -- usada para pesar os pequenos --, colocada em cima da máquina de costura, na casa vileira onde mora, é a prova do seu empenho.
É com esse apetrecho que Rosalina e suas companheiras vão de casa em casa para conversar com as mães e orientar quanto à nutrição. A medida do soro é um símbolo dessa pequena ação que reduz a mortalidade infantil. "Conseguimos salvar muitas vidas com isso aqui", reforça.
Atualmente, Rosalina percebe uma redução no número de atendimentos. São pouco mais de sete famílias. O motivo, opina, é que a "mulherada" está trabalhando mais e se cuidando mais. Com isso, têm menos filhos. E entre uma prosa e outra no portão das casas, orgulha-se quando vê um menino que cuidou transformado em um adulto saudável.
Quarta-feira lá na Ossa
A Ossa -- sigla que virou quase apelido carinhoso da Obra Social de Santo Aníbal, da congregação italiana dos rogacionistas -- é um dos maiores prédios do Bolsão Audi-União. São 800 metros quadrados, três pisos, com ginásio de esportes e educadores treinados. O projeto tem entre seus apoiadores o arquiteto Jayme Bernardo. Ao todo, 150 crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos participam do programa, instalado num grotão de pobreza da vila União Ferroviário.
Ao lado do Icaraí, a União Ferroviário foi um dos encraves mais complicados da ocupação. No pátio, em meio àquele corre-corre infernal da gurizada, a agressividade era comum. Há seis meses, desde que foi instalada da Unidade Paraná Seguro na região, a conversa parece ter mudado de rumo.
Os educadores festejam. Mas não sossegam. Sabem que os meninos e meninas vinculados à Ossa enfrentam sem trégua os efeitos do tráfico e da violência. E que precisam aprender a lidar com isso. As pastas que documentam as atividades dos participantes não deixam mentir. Na obra, palavra de ordem é respeito, amizade e amor. Mas a realidade dura da rua sempre respinga nos cartazes feitos pelas crianças.
Uma das ações mais incríveis do programa é, uma vez por semana, reunir no ginásio integrantes das ONGs Voice for Change, do Canadá, e Recanto Esperança, criada por suíços residentes na cidade. Eles se misturam à turma da Ossa e jogam o floorball, vencendo ali, no esporte, as diferenças de vilas e inimizades entre moradores. É um treino, pois lá fora, é jogo.
Em tempo. Na última quarta-feira, chamava atenção a presença de Lisa N., missionária alemã de 18 anos. Ela está em Curitiba desde agosto, como voluntária do Recanto Esperança. Ficará seis meses no Uberaba. Por enquanto, quase não fala português, o que não a impede de brincar com as crianças das vilas Audi, Icaraí e Ferroviário. Tem dado aulas de inglês para os pequenos. "Quero fazer as crianças felizes", diz a estrangeira que passa seus dias na mais difícil das Curitibas.
* Colaborou Marina Mori