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Entrevista

Pequeno manual de saberes caipiras

Renato Teixeira “conversou” com 1,5 mil professores durante o seminário Ler e Pensar. | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
Renato Teixeira “conversou” com 1,5 mil professores durante o seminário Ler e Pensar. (Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo)

“Poxa vida – 1,5 mil professores. Vocês podiam ter me avisado antes. Eu parei na sexta série...”, brincou um bem humorado cantor e compositor Renato Teixeira, 70 anos, ao saber o tamanho da plateia que ocupou o Guairão, na última terça feira (27), para ouvi-lo cantar e falar no 12.º Seminário Ler e Pensar, promovido pelo Instituto GRPCom, do qual a Gazeta do Povo é parte. Desde sua criação, em 1999, o programa atingiu cerca de 1 milhão de professores e alunos.

Teixeira – autor de standards da música brasileira, como “Frete” (tema da série Carga Pesada), “Amanheceu, peguei a viola” (abertura do programa Som Brasil) e “Um violeiro toca” teve uma relação difícil com a escola. “Posso sugerir uma coisa? Incluam música nos currículos”, pediu, ao seleto público que cantou com ele, de cabo a rabo, seis sucessos de sua carreira.

Com quase 50 anos de vida pública, Renato Teixeira faz parte do panteão de compositores brasileiros que coleciona canções impressas no imaginário popular, ao lado de Roberto Carlos e Lupicínio Rodrigues (de quem canta, sempre ao final, “Felicidade”). Enquadrado no gênero folk, ele promove uma engenhosa colagem da tradicional música de raiz – “verdade que estava buscando na minha juventude” – com a estética da bossa nova e da chamada MPB – “referências nas quais me formei”.

“Sou caiçara e caipira ao mesmo tempo”, brinca o artista nascido em Santos, litoral de São Paulo, mas criado no Vale da Ribeira. Sua trajetória conta, inclusive, com uma passagem pela minúscula Porecatu, no interior do Paraná, na década de 1940. “Minha vida cruza com a de vocês”, disse o veterano que regeu um coro de 1,5 mil vozes na hora em que cantou a sublime “Romaria”, seu maior sucesso, na voz de Elis Regina. Luzes de celulares se acenderam. Lágrimas. Não seria exagero afirmar que nesse momento o mestre violeiro e contador de histórias Renato Teixeira se reconciliou com a escola, da qual se apartou quando tinha 12 anos.

Confira a seguir edição da “entrevista show” dada durante o evento.

Uma jornalista de Curitiba, Vania Mara Welte, costuma perguntar às pessoas qual é a lembrança mais antiga que elas têm. Nossa recordação mais distante diria algo sobre nós... Qual é a sua?

A praia de Ubatuba [litoral de São Paulo], com música. Sou a quinta geração de uma família de músicos. Lembro de muitos violões, de cantoria, de minha mãe com minhas tias cantando a quatro vozes. Vejo um dos tios tocando violão...

De que barro você é feito?

Sou feito da areia da praia.

O que nasce primeiro – o violeiro, o compositor, o poeta, o contador de histórias...

Sou um violeiro que conta histórias. Quando lembro de Ubatuba, com todo mundo tocando violão, recordo que eu também queria tocar, mas não havia quem me ensinasse. Ninguém gostava de ensinar. Foi quando resolvi que ia inventar minhas próprias músicas. E estou inventando até hoje. [risos]

E as músicas, como nascem?

Em qualquer lugar onde haja caneta e papel. Algumas ficam, outras morrem. A gente nasce com jeito para fazer isso, mas o dom aumenta à medida que entendemos como a música pode colaborar com a identidade de nosso povo. Isso me motiva. O que faço é música para levar para casa. Tem música que convida a sair de casa – a minha não. Convida a recolher.

Conta para a gente como o menino da praia virou uma referência da cultura caipira.

Existem definições interessantes sobre o povo brasileiro – como aquela que nos divide entre os caiçaras e os caipiras. Os caiçaras são de baixo e os caipiras são de cima. Mas os costumes dos dois grupos eram parecidos. A viola é litorânea, mas também vai para o interior. Tem um monte de coincidências. Aconteceu comigo. Com 12 anos, no começo da década de 1960, saí de Ubatuba e fui para Taubaté (Vale do Paraíba). À época, equivalia a mudar de um país para outro. Para mim, que tinha uma identidade com a música, essa mudança foi bastante interessante.

Em Taubaté, o que eu tinha para mostrar para os meninos da rua era que já tocava violão, que sabia fazer músicas. Comecei a levar o violão para a escola. Tornou-se um companheiro querido. Virei um compositor municipal, o cara que fazia letras para os padres, para os amigos, que tocava no mercado da cidade. Depois disso, ampliei meus espaços. O Brasil, hoje, é a minha Taubaté de antigamente.

Qual a invenção de Renato Teixeira?

Minha formação é toda MPB. Escutei Pixinguinha, Luiz Gonzaga, Tom Jobim. Mas acontece que me tornei adulto em Taubaté, lugar que tem uma cultura popular muito rica. Ao buscar minha identidade, me tornei cada vez mais taubateano. A moda que tocava lá era Tonico e Tinoco. Quando eu trabalhava na Rádio Difusora de Taubaté, tentava apresentar Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Carlos Lyra para eles. Em resposta, me mostravam os caipiras. Foi assim que fiz minha própria química. Peguei a música caipira, que naquele momento encerrava seu círculo glorioso, e a conciliei com a MPB. As coisas foram se ajeitando, até eu achar minha linguagem.

O Brasil Profundo pode nos salvar?

No Brasil tem dessas coisas, né. Quando surge algo novo, todo mundo esquece o que nos trouxe até aqui. A gente precisa se ligar que não existe futuro sem passado. Não tem Chico Buarque sem Noel Rosa. Não tem Tom Jobim sem Villa Lobos. Poxa, quando eu fui atrás, encontrei a Chiquinha Gonzaga... Eu diria que o Brasil Profundo é a música de raiz, feita por aquele pessoal que dança, que bate o pé, que faz Folia de Reis, que bota a viola na sacola. Mas isso tudo tinha de conversar com o Rio de Janeiro, que era a caixa sonora do Brasil.

“Ando devagar porque já tive pressa...” Quem anda devagar chega lá?

[risos] Andando se vai ao longe, sonhando se chega lá. Uma coisa que a carreira me ensinou foi a ter muita paciência. No campo da cultura, as coisas não acontecem na velocidade que a gente imagina. Teve momentos da minha carreira em que já tinha feito “Romaria”, ia tocar, e só tinha duas-três pessoas na plateia. Eu precisava fazer uma conquista. A cultura caipira me ensinou a não ter pressa.

Você começou sua carreira no Festival da Record, em 1967. Logo serão 50 anos. Em algum momento pensou em fazer outra coisa na vida?

Aconteceu comigo um troço engraçado. Parei de estudar na segunda série do ginásio. Fui repetente nove anos. O mundo do conhecimento sempre me interessou, mas o ginásio e o científico não me interessavam nem um pouco [risos]. Por incrível que pareça, a única coisa que aprendi na minha fase de escola foi latim [risos]. Estudava num colégio de padres e fugi. Pulei o mudo, caí na horta das irmãs sacramentinas, ao lado. Elas me viram, acabei suspenso.

De castigo, meu pai me pôs para estudar latim com o padre Gil. Tenho uma relação bem legal com o idioma. Me confundo um pouco com esse negócio de cedilha e “esses”, mas o computador ajuda a corrigir. Foi difícil falar para o meu pai que eu não queria mais ir para a escola. Foi quando ele me arrumou um teste na Ford, com um amigo. Me chamaram para o psicotécnico – aquele com quadradinho e bolinha. Não passei. O amigo ligou e disse para minha família: “Olhe cara, não posso fazer nada”. Anos depois, consegui um emprego em São Paulo. Vi a bossa nova se consagrar; acompanhei o sucesso de “A Banda”, do Chico Buarque; pude ver o surgimento do tropicalismo...

Não teve a escola, mas teve Guimarães Rosa, como você chegou a declarar...

Gostava de ler. Lá em Taubaté a gente lia muito Monteiro Lobato, porque ele é de lá. Meu pai tinha muitos livros em casa. Mas nunca li para ser um cara culto. Lia para fazer músicas.

Renato, temos aqui [no Guairão] 1,5 mil professores...

Por que não me falaram isso antes. Estão aqui ouvindo o cara que parou de estudar na sexta série [risos]. E pensar que meu avô, Teodorico, foi secretário da Educação em SP; minha avó Juventina foi professora. Tive tias professoras. Meu pai adorava estudar. Formou-se em Direito depois de uma certa idade e começou a dar aulas. Estive no meio dos mestres, vai ver que é por isso que não precisei estudar. [risos] Eu era só o cara que queria fazer músicas para os outros cantarem. Posso dar uma dica? Gostaria muito que se ensinasse música nas escolas. [aplausos]

No meio do seu caminho havia uma mulher chamada Elis Regina. Como foi?

Nem meados da década de 1970, eu produzia jingles para publicidade. Vivia disso, mas também fazia música. Fui na casa da Elis, mostrei algumas. O filho dela, o Pedro Mariano, era pequeno e dizia: “Mãe, canta aquela do caipira”. Ela se ligou na música.

Quando fiz “Romaria”, morava em Pinheiros (São Paulo). Chegava de noite em casa e tocava violão. De manhã, todo dia, minha mãe – que ocupava um apartamento ao lado – lavava o meu colchão com álcool. Ela achava que eu levava mulherada lá, e eu escrevendo “Romaria” [risos]. Estava pilhado. Gostava de poesia concreta, conhecia o Décio Pignatari, o maestro Rogério Duprat, e queria produzir uma música que tivesse a ver com concretismo. Só que travei na última frase – “é de sonho e de pó... o destino de um só, feito eu perdido ...” Repare que tem a ver com a poesia concreta, a maneira como uma frase se liga à outra.

Comecei a delirar. Escrevi “meu olhar” no final, mas o resto não vinha. Apresentei a música inacabada para o produtor Marcus Pereira. Ao ouvi-la, ele me deu um beijo, falou que eu tinha feito uma coisa muito bonita, mas nada de conseguir terminar. Ficou daquele jeito mesmo. Acaba com “meu olhar, meu olhar, meu olhar” [risos]

E de repende “Romaria” se tornou um dos “hinos nacionais” brasileiros...

Pois é. A Elis gravou, mas demorei a me dar conta do que tinha acontecido. Um dia, fui na rua tomar um café, e ouvi um cara assobiando “Romaria”. A primeira reação foi de ciúme. Me senti lesado, roubado. Aquele foi meu primeiro encontro com o sucesso.

Você tem fome de quê?

[risos] Não tenho muitas ansiedades. Pra mim, a vida corre mansa. Moro no mato, na Serra da Cantareira. Sou um cara que se dá bem com o que faz. Vivo disso. Tenho fome de viver, de estar no palco, de fazer música. Cheguei aos 70 anos. Quando a gente é mais jovem, tem aquele sonho de encontrar um grande amor. Depois cria os filhos e a vida vai passando, até a gente descobrir outros sentimentos. Além da amizade, do carinho, chega para a gente o melhor de todos os quereres – o bem querer. É bom olhar para uma pessoa e só sentir carinho. Vai ver que digo isso porque a música amansa muito a gente, o que inclui o pessoal de heavy metal. [risos]

Podemos falar do Brasil?

Somos um país miscigenado, rico, mas a gente está sempre contra a parede. Não se organiza. Até quando estamos felizes, ficamos com o pé atrás. Não vejo a hora de transformar a Câmara dos Deputados num aplicativo [risos]. O Estado faz tanta confusão que está perdendo a importância. Mesmo assim, acho que é daqui que vai sair uma nova ordem planetária. Passei pela ditadura militar, vi amigos serem presos, provei da censura. Hoje sou otimista. Viajo pelo interior do país e me vejo deslumbrado. Estive em Maringá, fiquei pasmo. Esse país cresce, apesar de tudo. Muita coisa boa está por vir.

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