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A análise da Polícia Federal das imagens das supostas agressões contra o ministro Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma, em 14 de julho, divulgada nesta quarta-feira (4), não consegue chegar a uma conclusão precisa.
O relatório, que compõe o inquérito aberto no Supremo Tribunal Federal (STF) a pedido do próprio Moraes, afirma que a ausência de outras gravações de imagens ou de áudios "dificultou a completa elucidação dos fatos". Roberto e Andreia Mantovani, acusados por Moraes, de acordo com o documento, "possivelmente, podem ter ofendido, injuriado ou até mesmo caluniado" o ministro Alexandre de Moraes e seu filho, e este último teria sido atingido no rosto com um "aparente tapa".
As expressões vagas usadas no relatório - "possivelmente", "podem ter ofendido", "aparente tapa" - chamam a atenção tanto pela conclusão do documento, que induz a culpá-los apesar da ausência de provas, quanto pelo tratamento abusivo empregado pela Polícia Federal contra o casal desde o início das investigações.
Já no dia 18 de julho, ao prestar depoimento, Roberto e Andreia foram surpreendidos com perguntas que tentavam relacionar os dois aos atos de vandalismo do 8 de janeiro, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, tema sem conexão com o fato ocorrido no aeroporto de Roma. Os dois foram questionados sobre a possível participação nas manifestações em frente aos quartéis depois das eleições de 2022 e se haviam disseminado mensagens contra as urnas eletrônicas.
A perplexidade aumentou quando, após os depoimentos, os agentes os revistaram e depois partiram para cumprir mandados de busca e apreensão em suas casas, onde foram confiscados celulares e computadores, medida não prevista no direito brasileiro em um caso de suspeita de crime contra a honra. "A busca e apreensão para apurar crime contra a honra é algo inexistente na doutrina e jurisprudência, o ilícito se inicia e se encerra na fala de alguém, nada há mais a se apurar", explica o advogado constitucionalista André Marsiglia.
A prática realizada pela PF a mando do STF é conhecida como pesca probatória, uma tradução do termo "fishing expedition".
O termo descreve operações em que, sob o pretexto de apurar um crime (geralmente algo de menor impacto), as autoridades decretam a apreensão de itens pouco ou nada relacionados com o objeto inicial da investigação. O objetivo: obter indícios de outros crimes.
Em outras palavras, a pesca probatória consiste em uma investigação sem um escopo bem delimitado, que usa pretextos para obter documentos, celulares e computadores. Tendo esse material em mão, os investigadores podem encontrar "por acaso" outros indícios de crimes, mesmo que eles não estejam relacionados ao tema da investigação inicial. É o que os juristas chamam de "encontro fortuito" de provas. No caso, os policiais pareciam procurar meios para vincular o casal aos atos do 8 de janeiro e, pelo divulgado até agora, não conseguiram encontrar.
A prática da pesca probatória costuma ser condenada em democracias, e também até agora pelo STF e outros tribunais, por ser considerada um abuso do Estado sobre o indivíduo. Nesse sistema, considera-se que há parcialidade de quem investiga – por meio de uma série de violações de direitos do atingido, tenta encontrar algo que possa incriminá-lo.
Em 2014, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes concedeu um habeas corpus ao banqueiro Daniel Dantas alegando que, ao conduzir uma busca e apreensão em um dos escritórios do investigado, os policiais vasculharam uma área que não estava explicitamente mencionada na ordem judicial. O ministro determinou que o material apreendido fosse devolvido imediatamente. A 2ª Turma do STF confirmou a decisão.
"A busca e apreensão de documentos e objetos realizados por autoridade pública em 'casa' de alguém, sem autorização judicial fundamentada, revelam-se ilegítimas e o material eventualmente apreendido configura prova ilicitamente obtida", afirmou Mendes em sua decisão.
Mesmo assim, o STF tem atuado dessa forma nos últimos anos, não apenas do caso dos Mantovani.
Na investigação dos empresários investigados por supostamente terem trocado mensagens de teor “golpista” no WhatsApp, a investigação ordenada pelo STF obteve, de forma questionável (e desproporcional) — por meio de celulares apreendidos —, mensagens encaminhadas pelo então presidente da República, Jair Bolsonaro.
Em outro caso, uma investigação sobre fraudes em cartões de vacina, ao que tudo indica operada pelo coronel Mauro Cid Barbosa, levou à apreensão dos celulares do ex-presidente Jair Bolsonaro e da ex-primeira dama Michelle Bolsonaro, uma medida desproporcional. O caso é ainda mais peculiar porque, embora tratasse de uma investigação sobre fraude de documento envolvendo um investigado sem foro privilegiado (Mauro Cid), a apuração dos fatos se deu no próprio STF.
Em comum, esses casos têm o fato de estarem sob o comando do ministro Alexandre de Moraes.
No caso de Cid, a vice-procuradora geral da República Lindôra Araújo expressou preocupação com o procedimento do ministro, como já havia feito no caso dos empresários. Como mostrou reportagem da revista VEJA, ela afirmou também que esta não seria a primeira vez que a corte estaria ultrapassando os seus limites.
"Os elementos apontados são por demais incipientes a recomendar quaisquer diligências ou medidas em face dos investigados, sob pena de se validar a pesca probatória, à semelhança de outras investigações em curso no âmbito do Supremo Tribunal Federal", escreveu Lindôra.
No caso dos Mantovani, a tentativa de relacioná-los ao 8 de janeiro os colocaria nas mãos do próprio Moraes, que se diz vítima das agressões no aeroporto – tornando-o acusador, vítima e juiz do caso. "Não podemos deixar de notar que, a depender do resultado da diligência, os investigados poderiam passar a ser incluídos no inquérito dos atos antidemocráticos, em trâmite no STF, e a competência para investigar e julgar o caso seria da Corte, mais especificamente, da própria vítima da agressão, o relator dos inquéritos, ministro Moraes", explica Marsiglia.
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Instabilidade jurídica
O uso da "pesca probatória" já seria condenável se fosse aplicado de forma uniforme, a todos os investigados. Mas a situação é ainda pior porque, recentemente, a corte tem adotado um critério diferente em outros casos. São dois pesos e duas medidas.
O próprio Supremo tem restringido o que considera provas legítimas. Nas últimas semanas, o ministro Dias Toffoli anulou todo o material obtido com a delação da Odebrecht.
A decisão se baseia em mensagens privadas obtidas pelo hacker Walter Delgatti Neto. A corte considerou válido o uso do material, que mostraria irregularidades na delação da Odebrecht. Mas, se fosse aplicar os próprios critérios, o Supremo teria de descartar as mensagens obtidas pelo hacker.
A jurisprudência da corte trata como nulas as provas obtidas por meio de crime. Em um julgamento de 2017, por exemplo, o ministro Celso de Mello recuperou um argumento apresentado por ele em outros casos semelhantes. "Ninguém pode ser investigado, denunciado ou condenado com base, unicamente, em provas ilícitas, quer se trate de ilicitude originária, quer se cuide de ilicitude por derivação. Qualquer novo dado probatório, ainda que produzido, de modo válido, em momento subsequente, não pode apoiar-se, não pode ter fundamento causal nem derivar de prova comprometida pela mácula da ilicitude originária", ele escreveu.
Ou seja: mesmo que as mensagens tenham sido encontradas pelos investigadores de forma lícita (ou seja: a operação que apreendeu o material cumpriu as normas legais), o fato de elas originalmente terem sido fruto de um crime (a violação dos celulares de membros da Lava Jato) as desqualifica. Ou deveria desqualificar.
Rigor com policiais
A jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça) é similar. Há poucas semanas, o tribunal decidiu que policiais não podem usar como prova uma mensagem lida no celular de um suspeito (o aparelho estava bloqueado, mas a mensagem apareceu como notificação na tela). Os magistrados argumentaram que o agente violou o sigilo do aparelho sem ter um mandado judicial.
No caso, os policiais revistaram um traficante conhecido e viram a mensagem. Decidiram, então, ir até a casa da pessoa que enviou a mensagem. Lá, este segundo suspeito tentou fugir e foi preso. Os policiais encontraram cocaína no local.
Para o advogado e pesquisador de direito constitucional Antonio Pedro Machado, é aceitável que o STF mude seu entendimento sobre a Constituição, desde que cumpra dois requisitos. Primeiro, ele precisa se adequar aos mecanismos existentes na própria legislação para explicar a mudança de entendimento. "Além disso, é preciso que o Poder Judiciário se utilize dos meios previstos na legislação para resguardar as relações jurídicas que se estabeleceram sob o entendimento que prevalecia à época em àquelas se estabeleceram", ele explica. Ou seja: a nova jurisprudência não pode retroceder no tempo para punir. "Se estes dois requisitos não forem observados, a mudança de jurisprudência pode se tornar um problema grave, já que a previsibilidade, que é o cerne da segurança jurídica, acaba se esvaindo", explica Machado.
A advogada Géssica Almeida não tem dúvidas de que o STF tem atuado como um agente desestabilizador — inclusive ao promover a "pesca probatória". "No passado recente, as investigações guardavam fortes indícios de provas com a conduta do suposto agente investigado. Atualmente, a procura não possui objeto definido ou conduta supostamente criminosa a ser investigada", ela afirma.
Géssica diz ainda que as consequências do padrão duplo adotado pelo STF se espalham pelo Judiciário. "É praticamente unânime no mundo jurídico que as mudanças constantes na interpretação da Constituição e das leis geram insegurança jurídica. São decisões judiciais baseadas em elementos jurídicos imprevisíveis e dependem até do humor do julgador", critica.
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