O núcleo de fraudes que teria sido montado dentro do Fórum de Paranaguá e que está sendo investigado pelo Ministério Público Estadual (MP) foi muito além da apropriação de indenizações de centenas de pescadores do Litoral do Paraná, prejudicados por acidentes ambientais ocorridos em 2001 no estado. Segundo a investigação do MP, o grupo montou uma ramificação para embolsar e dividir custas geradas por ações ajuizadas após a prescrição do prazo ou em duplicidade. Foram identificados cerca de 12 mil destes processos, chamados pela organização criminosa de "processos podres". As custas destas ações seriam pagas integralmente pelos pescadores, a partir de manobras jurídicas.
Os "processos podres" começaram a ser identificados no segundo semestre de 2013, logo após a juíza Mércia do Nascimento Franchi assumir a 2.ª Vara Cível de Paranaguá. Nesta repartição havia entre 5 mil e 6 mil processos separados em uma sala, fora do cartório onde supostamente deveriam permanecer. No segundo semestre deste ano, a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) promoveu uma intervenção no cartório, que culminou com a estatização do tabelionato. Outros 6 mil "processos podres" foram ajuizados na 1.ª Vara Cível de Paranaguá.
A Gazeta do Povo teve acesso a algumas destas ações, ajuizadas na 2.ª Vara entre 2004 e 2006. Quase todas seguiam o mesmo caminho: apesar de os crimes ambientais prescreverem três anos após os acidentes, os advogados dos pescadores ingressavam com os processos após o prazo previsto na legislação. Na fase de contestação dessas ações, o defensor da Petrobras, empresa responsável pelos acidentes, apontava que a ação havia prescrito. Em casos identificados pela reportagem, os representantes dos pescadores firmavam, então, um acordo com o advogado da estatal, desistindo do processo e estabelecendo que as custas processuais seriam pagas integralmente pelos autores.
Nesta fase, as custas ainda não eram pagas, porque, por sua condição de penúria, os pescadores eram beneficiários da Justiça gratuita. Entretanto, posteriormente, o escrivão da Vara incluía no processo a informação de que havia detectado que o pescador estava prestes a receber a execução provisória de outro procedimento movido contra a Petrobras. Com isso, o juiz determinava que as custas da ação prescrita seriam pagas pelo pescador, a partir do dinheiro obtido por ele com as indenizações. Desta forma, os pescadores pagavam a conta dos "processos podres" a partir das ações "boas". Pelo menos dois juízes assinam decisões com esse teor.
"Tendo em vista a informação do Sr. Escrivão, autorizo a dedução das custas processuais devidas nos presentes autos, inclusive a taxa Funrejus, em eventual indenização a ser recebida pelo pescador respectivo", consta dos despachos judiciais. Em um dos processos, o pescador Honilson da Silva Cordeiro teve de pagar R$ 813,76 de custas de processos podres. Em outro, movido pelo pescador Alberto Chaves, as custas somaram R$ 805,31.
Em um caso de "processo podre" ao qual a reportagem teve acesso, a juíza Mércia Franchi revogou a determinação que descontava do pescador as custas da ação inválida e decidiu pelo arquivamento do processo.
Grupo ajuizava processos em excesso e em duplicidade
Além de ajuizar ações fora do prazo previsto em legislação, a quadrilha denunciada pelo Ministério Público ingressava com processos em excesso. Em vez de propor uma única ação, o advogado ingressava com dois procedimentos: um por dano moral e outro por dano material. O núcleo chegava ainda a mover duas ações distintas, mas sobre o mesmo fato (litispendentes). Para a 1.ª Promotoria Criminal de Paranaguá, o objetivo era claro: gerar custas ao cartório que integrava o esquema.
Em depoimento aos promotores, a advogada Cristiane Uliana, que representava centenas de pescadores, detalhou que havia milhares de ações geradas no nome dela com o único interesse de suscitar custas. "Foram gerados muitos processos. Muitos, muitos, muitos processos. E o interesse, realmente, eram as custas", assumiu. Ela foi uma das denunciadas no esquema.
Outro acusado, o serventuário Arival Tramontin Ferreira Júnior, também destacou que a estratégia do grupo era propor ações em excesso e que cada processo gerava mais de R$ 300 ao grupo. "Cada processo que um pescador propunha se desdobrava em outros dois processos, que davam em torno de R$ 330. É um valor pequeno, só que passam de 14 mil processos ajuizados", disse.
"Foi um crime muito bem arquitetado"
Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Criminal, o advogado Carlo Frederico Müller considera que seria difícil aos juízes que autorizaram o desconto das custas dos "processos podres" do valor a ser recebido por pescadores perceber que havia uma articulação criminosa por trás das ações. Ele diz que não é irregular a revogação do direito à Justiça gratuita ao longo do processo, caso apareça fato novo que dê ao beneficiário condições de pagar pelas custas.
Para o advogado, chama a atenção a "má fé" dos advogados que integravam o grupo denunciado. "Se for comprovado, realmente foi [um crime] bem arquitetado. E há formas para que cada um seja responsabilizado por sua efetiva participação, cível e criminalmente", disse.