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A melhora no policiamento, e não a chamada "profissionalização" do crime organizado, é o fator principal na redução dos números de homicídios. É o que sugere uma pesquisa recente sobre a atuação do PCC (Primeiro Comando da Capital) em São Paulo.
Nos últimos anos, propagou-se na imprensa e na academia a ideia de que os grandes grupos criminosos teriam organizado de tal forma seus métodos de atuação a ponto de terem começado a mediar conflitos violentos envolvendo seus integrantes e até mesmo brigas entre moradores de favelas. Isso, segundo essas correntes teóricas, seria o principal fator na redução dos homicídios em algumas partes do Brasil.
Ao menos no caso do estado de São Paulo, isso é uma falácia, de acordo com o artigo "PCC ou políticas públicas? Uma análise da redução dos homicídios em São Paulo", publicado em Cadernos Gestão Pública e Cidadania, revista acadêmica da FGV (Fundação Getúlio Vargas). A pesquisa mostra que foi principalmente o aprimoramento da atuação policial, aliada à melhoria nos indicadores socioeconômicos, que contribuíram para combater a violência.
O autor, Bruno Alvarenga, é capitão da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP) e mestre em Gestão de Políticas Públicas pela USP (Universidade de São Paulo). Ele contesta o que chama de "hipótese PCC", isto é, a ideia de que, ao dominar as favelas em São Paulo, o PCC teria se tornado uma instância mediadora de conflitos violentos.
A análise dessa teoria foi parte de sua tese de mestrado, defendida em 2018, que trata da evolução das taxas de homicídios de 1996 a 2016 no estado de São Paulo. A curiosidade pelo tema se deveu, em parte, à experiência pessoal de Alvarenga como morador da periferia durante sua infância e adolescência.
"Eu era adolescente na periferia de São Paulo em 1999, quando os homicídios chegaram ao topo. Vi os homicídios reduzindo, os colegas parando de morrer, e a gente viu a polícia chegando e o Estado entrando na periferia. Antes, a gente não via viaturas policiais; de repente, a gente começou a ver", relata.
O pesquisador diz que, justamente por ter tido essa experiência, começou a enxergar com desconfiança as correntes teóricas atribuindo a redução dos homicídios ao PCC. "Eu pensava: 'caramba, eu não via o PCC ali no meu dia a dia'. Não via isso. Mas via o estado, principalmente a polícia, entrando na periferia e começando a mediar aqueles conflitos interpessoais banais. Então, essa 'hipótese PCC' para a redução dos homicídios não me convencia", conta.
"Hipótese PCC" atrai imprensa, mas não tem base em dados quantitativos, afirma pesquisador
Para Alvarenga, o sucesso da "hipótese PCC" tem a ver, em parte, com o atrativo que ela pode ter para a imprensa. "Quando o cachorro morde a mulher, isso não é notícia. Se a mulher morder o cachorro, isso, sim, interessa. A polícia reduzindo o crime é algo normal. A polícia é paga para reduzir o crime. O crime organizado reduzindo o crime é a mulher mordendo o cachorro. É natural que algo assim chame a atenção da imprensa, da mídia. Isso vende", comenta.
A "hipótese PCC", segundo ele, não está embasada em dados quantitativos, mas principalmente em especulações teóricas. "Todos os trabalhos que olham para os dados quantitativos com uma análise um pouco mais profunda não encontram a influência do PCC no fenômeno de redução dos homicídios em São Paulo. Só que a imprensa deu mais atenção para esses trabalhos [que defendem a 'hipótese PCC'] do que para outros trabalhos que são lastreados em indicadores, em dados", diz.
Um dos aspectos que, para Alvarenga, mostra a debilidade da "hipótese PCC" é o fato de que as favelas, onde o PCC – segundo essa hipótese – teria maior domínio sobre a comunidade, têm praticamente o mesmo nível de redução de violência que outros locais.
"Quem defende a 'hipótese PCC' parte do pressuposto de que o PCC tem o monopólio do mundo crime nas favelas. Eu uso esse mesmo pressuposto para testar a 'hipótese PCC'. Se ele dominasse as favelas, nós deveríamos observar uma redução significativamente maior dos homicídios nos lugares com mais favelas, seguindo os pressupostos da hipótese. E não há essa redução", explica.
Atuação da PM em conflitos banais entre pessoas é fator negligenciado sobre redução das mortes
Em sua pesquisa, Alvarenga descobre três fatores principais para a redução do crime: a melhoria dos indicadores socioeconômicos, a redução da proporção de jovens e – mais importante – o aumento do policiamento. Esse terceiro fator é de longe, de acordo com ele, o que mais contribuiu para reduzir os homicídios.
"Mudanças na PM e na redistribuição do policiamento têm uma relação significativa com a redução dos homicídios. Só que esse dado [da redistribuição do policiamento] não é público. Foi bastante difícil obter esses dados. Acho que por isso alguns pesquisadores tinham dificuldade de olhar para essa variável específica", afirma.
A melhoria no policiamento reduz especialmente o risco de homicídio no que se costuma chamar de "conflitos interpessoais banais", observa o pesquisador. Embora o imaginário das pessoas sobre a atuação da polícia se volte cada vez mais para o combate ao crime organizado, ele destaca que os pequenos conflitos se mantêm como uma das causas preponderantes de homicídios. A atenção do poder público paulista no início dos anos 2000 a esse tipo de problema, com aumento da atuação policial nesse sentido, foi, de acordo com a pesquisa, o motivo principal na redução das mortes.
"O que a polícia mais faz, em especial na periferia, é justamente mediar conflitos interpessoais entre conhecidos – que a gente chama de 'atendimento de ocorrência social' –, como desentendimentos, brigas de vizinhos… É o que a gente mais faz", afirma o policial. "O maior papel da polícia hoje talvez seja esse do atendimento social, em especial em lugares mais sujeitos a homicídios, como bares. Mas algumas teses falaciosas de que a polícia não reduz homicídios acabam induzindo o gestor público a não fazer um trabalho específico nesse sentido. Por isso é importante a polícia entrar na periferia, entrar nos lugares onde há mais homicídios para mediar os conflitos interpessoais banais. Esse pode ser um caminho promissor, que foi o que São Paulo fez lá no começo dos anos 2000, quando redistribuiu o policiamento e ocupou essas áreas onde havia mais homicídios", comenta.
A segunda variável com mais relevância, de acordo com o pesquisador, foi a melhoria dos indicadores socioeconômicos. Para constatar isso, ele cruzou dados de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) no município de São Paulo com números sobre homicídios. Entre 2000 e 2010, o IDH paulistano cresceu 9,8%, passando de 0,733 para 0,805.
Outro fator, com menos relevância, mas que também contribuiu para a queda nos homicídios, foi a redução da proporção de jovens de 15 a 24 anos na população paulista. Isso, segundo o pesquisador, pode se dever ao fato de que o envolvimento de jovens em conflitos violentos é mais comum em comparação com outras faixas etárias.
Alvarenga não descarta totalmente a influência de mudanças na forma de atuação do crime organizado como fator para a diminuição da violência. Mas, para ele, caso isso tenha ocorrido no caso do PCC em São Paulo, o efeito foi irrisório.
"Não chego a derrubar um mito. Estou indicando que isso pode ser mito, que a gente pode, sim, reduzir homicídios por meio do trabalho da polícia, e que a romantização da atuação do crime organizado na redução dos homicídios pode ser uma falácia", diz.