| Foto: Antônio More / Gazeta do Povo

Em 2011, ao ocupar sua nova sede, na Rua João Negrão, a direção do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná, o IFPR, encontrou um cofre, grande como uma sala de estar. Dentro do cofre não havia nem ouro nem prata, mas guardava de fato um tesouro: um sem número de documentos sobre uma das maiores ervateiras do estado, a Moinho Unidos Brasil – Mate S/A, mais conhecida como Mate Real. A empresa, criada oficialmente em 1834, funcionou no local por pelo menos 120 anos. Estava tudo revirado. Pedia quarentena e a presença urgente de um historiador – com máscaras. Seu nome é Edílson Aparecido Chaves, tem 44 anos e está a bordo de uma aventura.

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Veja mais fotos da Mate Real e do trabalho de resgate da documentação

Até pouco tempo, Edílson dividia com a estudiosa Clarissa Grassi o posto de autoridade em arte e história de cemitérios de Curitiba. “Não tinha sossego”, brinca, sobre a curiosidade que o tema desperta. A descoberta do cofre da Mate Real mudou tudo. Saíram os túmulos, entraram carteiras de trabalho das bisavós operárias, notas fiscais à mão e até cartas do Barão do Serro Azul, que tinha relações familiares com o donatário, o italiano Francisco Fido Fontana.

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Entregue ao achado, o historiador montou um novo projeto de pesquisa e encarou a montanha de documentos, anárquica o bastante para desanimar o mais espartano dos monges.

O historiador Edílson Chaves, no interior da velha fábrica do Mate Real, no Rebouças: alunos estudam “dentro” da história. 

Aprendizes

“Temos trabalho para dez anos”, calcula o professor, diante das 146 caixas de papeis, apenas 5% deles cadastrados, com a ajuda de uma equipe insólita: uma trupe de adolescentes – alunos do IFPR – dispostos a realizar uma tarefa que amedrontaria historiadores cinco estrelas – separar, higienizar, classificar e ressignificar fontes que atravessaram o século à espera de auxílio e debaixo do apetite dos cupins.

Na maioria, os estudantes envolvidos no projeto são oriundos do curso profissionalizante de Petróleo e Gás. Em tese, estariam mais interessados nas certezas da tabela periódica do que na suposta importância de um garrancho feito com tinteiro numa folha timbrada. Pois não foi o que aconteceu. O núcleo, formado por uma dezena de pesquisadores aprendizes, destaca-se em meio aos 3 mil alunos do IFPR. Uma ou outra descoberta sobre o que havia no cofre misterioso logo vira viral.

Fora do instituto não é muito diferente. Em participação recente num congresso em uma universidade alemã, Edílson Chaves apresentou o projeto desenvolvido na velha fábrica. Recolheu admiração dos conferencistas, desacostumados a ver iniciativas brasileiras, desse porte, pontificadas por secundaristas. “Pôr a mão na massa é um aprendizado”, diz – no que é apoiado, em coro, por seus jovens cientistas.

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A hoje acadêmica de Arquitetura Juliana Mara Maia de Andrade Vieira – formada em Edificações no IFPR – se alistou como voluntária no programa, do qual havia participado em anos anteriores. Todas as semanas, veste aventais, tocas e luvas e se põe à mesa com Jaqueline Ramos e Rafaella de Aragão, para citar duas bolsistas com as quais divide tarefas que exigem minúcias. “Me sinto desvendando a industrialização no Paraná”, comenta. Impressiona a Juliana, por exemplo, as plantas das fábricas.

Por esses mapas, sabe-se que o depósito de erva-mate tinha 690 metros quadrados; e a ala de empacotamento, 135 metros quadrados. As medidas servirão para a construção de futuras maquetes e para a reconstrução virtual da Mate Real, para que futuras gerações saibam como funcionava uma usina dessas. Sim, virtual: a fábrica cujo primeiro “diário de anotações” data de 1882 será demolida, em grande parte, para dar lugar ao novo prédio do Instituto Federal. O assunto é a saia-justa da temporada.

“Primas”

Em abril de 2011, com a demolição da Matte Leão, empresa “prima” da Mate Real, se tornou “líquido e certo” que as duas teriam o mesmo destino – virar um monte de caliça, encerrando pela segunda vez o ciclo da erva-mate, dessa vez levando o que sobrou de sua arquitetura. Tudo conspirou: o Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional é cada vez mais econômico na hora de recomendar novos tombamentos; o Patrimônio do Estado do Paraná segue o mesmo raciocínio; e a prefeitura de Curitiba viu sua política – à base de decretos – se esfarelar nos últimos anos.

A última pá de cal vem do próprio IFPR. O instituto precisa ampliar suas instalações. Tem 23 cursos técnicos e dois superiores. Comprou o local com esse intuito, assim como as instalações da Uniandrade, logo ao lado. As negociações para salvar alguns metros da Mate Real estão à mesa. Fontes da Fundação Cultural – que rege o patrimônio municipal – indicam que a fachada e a torre da fábrica serão preservadas. O IFPR estuda deixar um pedaço da fábrica em pé, com maquinário à mostra, para visitação. O resto viria abaixo. Para o futuro, sobrará a fúria dos aprendizes liderados por Edílson.

Imagem interna da Mate Real, no Rebouças: destaque para torre, que não teria nenhuma função específica. Setor do patrimônio trabalha para preservá-la, mesmo assim, como símbolo da construção.
Imagens internas de uma das maiores fábricas de mate do Paraná.
Paralelo a pesquisa sobre a Mate Real, corre estudo sobre as origens do IFPR. Uma de suas predecessoras é a Escola Técnica do Comércio, da década de 1940..
Jovens pesquisadores trabalham, inclusive, no interior do antigo cofre que guardava os tesouros documentais da Mate Real.
O historiador Edílson Chaves e alguns de seus jovens pesquisadores: iniciativa causou impressão em congresso na Alemanha.
Chaves no interior da fábrica do Mate Real: discussões sobre o que vai ser preservado de fato aquecem interior do instituto. Iphan já avisou que não haverá tombamento federal.
Espécie de livro ponto de 1882 concorre a um dos documentos mais antigos do acervo.
Alunos se protegem com máscaras. Documentos podem ultrapassar um século de criação.
Estudantes em atividade na sala cofre.
A velha fábrica de mate.
Edílson e uma das processadoras: no detalhe, os recipientes em que os tipos de mate eram separados,
Detalhe da máquna de processamento da erva-mate que está no ponto exato em que a João Negrão cruza com a Getúlio Vargas.
Recado no interior da fábrica. Número de funcionários nas mais diversas épocas ainda está sendo levantado por pesquisadores
Os documentos - depois da separação e higienização, a ressignificação, quando estudantes dizem o sentido, alcance e serventia dos documentos.
Apenas 5% da papelada foi trabalhada. Estimativa é que pesquisa dure uma década.
Estudantes separam material.
Curiosidade sobre publicidade, cartas e mapas torna experiência um marco.
Geral da fábrica: cenário para um filme.
Alunos em atividade: área técnica ganha know-how no campo da documentação.
Processo de higienização..
Refeitório da fábrica abandonada.
Maquinário da Mate Real..
Documentação que servirá de pasto para pesquisadores..
Cenas de uma fábrica.

Escola está imersa no passado fabril do velho bairro Rebouças

O fato de parte do IFPR funcionar, nos últimos anos, numa fábrica abandonada, só lhe fez bem. O cenário de torres, processadoras com mais de 10 metros de altura, tijolos à vista, ali, por décadas, transportam os alunos para o túnel do tempo, quando a riqueza do Paraná era a erva-mate. O efeito é tanto visual quanto acadêmico.

Além da pesquisa capitaneada pelo historiador Edílson Chaves, corre outra, dos professores Wilson Lemos, Leandro Pinto e Carla Wojcik Garcia, sobre as relações entre a escola alemã, de 1869; do Colégio Progresso, de 1914; e a Escola Técnica do Comércio, de 1941. Essas instituições teriam dado origem à Escola Técnica, atual instituto. Parte das pesquisas acontecem dentro do já famoso cofre que guardava – à moda de um arquivo morto – a documentação da mais do que centenária Mate Real.

As antigas oficinas da fábrica, contudo, têm acesso restrito. Parte do piso está avariado e representaria perigo para o alunado. Uma das máquinas, inclusive, sustenta o teto do barracão.

O local parece parado há mais tempo do que de fato: teria funcionado até 2010. O destino do equipamento é uma incógnita. A torcida é para que permaneça ali, com visitação aberta, à moda dos museus de tecnologia europeus.

O local impressiona, em especial pela quantidade de roldanas que parecem saídas do filme Tempos modernos, do Chaplin. Nas paredes, marcações, a lápis, sobre o ritmo da produção. Um refeitório, ao lado, todo branco, é ambientação pronta para um filme de guerra. A plaqueta nada gentil “Papo em hora de serviço, não vai ter” completa o quadro.

Lá fora, corre uma barulhenta “João Negrão”, alheia a essa paisagem urbana que fez parte da vida de incontáveis paranaenses. Muitos, por certo, adorariam revê-la. (JCF)

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