Em 2011, ao ocupar sua nova sede, na Rua João Negrão, a direção do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná, o IFPR, encontrou um cofre, grande como uma sala de estar. Dentro do cofre não havia nem ouro nem prata, mas guardava de fato um tesouro: um sem número de documentos sobre uma das maiores ervateiras do estado, a Moinho Unidos Brasil – Mate S/A, mais conhecida como Mate Real. A empresa, criada oficialmente em 1834, funcionou no local por pelo menos 120 anos. Estava tudo revirado. Pedia quarentena e a presença urgente de um historiador – com máscaras. Seu nome é Edílson Aparecido Chaves, tem 44 anos e está a bordo de uma aventura.
Veja mais fotos da Mate Real e do trabalho de resgate da documentação
Até pouco tempo, Edílson dividia com a estudiosa Clarissa Grassi o posto de autoridade em arte e história de cemitérios de Curitiba. “Não tinha sossego”, brinca, sobre a curiosidade que o tema desperta. A descoberta do cofre da Mate Real mudou tudo. Saíram os túmulos, entraram carteiras de trabalho das bisavós operárias, notas fiscais à mão e até cartas do Barão do Serro Azul, que tinha relações familiares com o donatário, o italiano Francisco Fido Fontana.
Entregue ao achado, o historiador montou um novo projeto de pesquisa e encarou a montanha de documentos, anárquica o bastante para desanimar o mais espartano dos monges.
Aprendizes
“Temos trabalho para dez anos”, calcula o professor, diante das 146 caixas de papeis, apenas 5% deles cadastrados, com a ajuda de uma equipe insólita: uma trupe de adolescentes – alunos do IFPR – dispostos a realizar uma tarefa que amedrontaria historiadores cinco estrelas – separar, higienizar, classificar e ressignificar fontes que atravessaram o século à espera de auxílio e debaixo do apetite dos cupins.
Na maioria, os estudantes envolvidos no projeto são oriundos do curso profissionalizante de Petróleo e Gás. Em tese, estariam mais interessados nas certezas da tabela periódica do que na suposta importância de um garrancho feito com tinteiro numa folha timbrada. Pois não foi o que aconteceu. O núcleo, formado por uma dezena de pesquisadores aprendizes, destaca-se em meio aos 3 mil alunos do IFPR. Uma ou outra descoberta sobre o que havia no cofre misterioso logo vira viral.
Fora do instituto não é muito diferente. Em participação recente num congresso em uma universidade alemã, Edílson Chaves apresentou o projeto desenvolvido na velha fábrica. Recolheu admiração dos conferencistas, desacostumados a ver iniciativas brasileiras, desse porte, pontificadas por secundaristas. “Pôr a mão na massa é um aprendizado”, diz – no que é apoiado, em coro, por seus jovens cientistas.
A hoje acadêmica de Arquitetura Juliana Mara Maia de Andrade Vieira – formada em Edificações no IFPR – se alistou como voluntária no programa, do qual havia participado em anos anteriores. Todas as semanas, veste aventais, tocas e luvas e se põe à mesa com Jaqueline Ramos e Rafaella de Aragão, para citar duas bolsistas com as quais divide tarefas que exigem minúcias. “Me sinto desvendando a industrialização no Paraná”, comenta. Impressiona a Juliana, por exemplo, as plantas das fábricas.
Por esses mapas, sabe-se que o depósito de erva-mate tinha 690 metros quadrados; e a ala de empacotamento, 135 metros quadrados. As medidas servirão para a construção de futuras maquetes e para a reconstrução virtual da Mate Real, para que futuras gerações saibam como funcionava uma usina dessas. Sim, virtual: a fábrica cujo primeiro “diário de anotações” data de 1882 será demolida, em grande parte, para dar lugar ao novo prédio do Instituto Federal. O assunto é a saia-justa da temporada.
“Primas”
Em abril de 2011, com a demolição da Matte Leão, empresa “prima” da Mate Real, se tornou “líquido e certo” que as duas teriam o mesmo destino – virar um monte de caliça, encerrando pela segunda vez o ciclo da erva-mate, dessa vez levando o que sobrou de sua arquitetura. Tudo conspirou: o Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional é cada vez mais econômico na hora de recomendar novos tombamentos; o Patrimônio do Estado do Paraná segue o mesmo raciocínio; e a prefeitura de Curitiba viu sua política – à base de decretos – se esfarelar nos últimos anos.
A última pá de cal vem do próprio IFPR. O instituto precisa ampliar suas instalações. Tem 23 cursos técnicos e dois superiores. Comprou o local com esse intuito, assim como as instalações da Uniandrade, logo ao lado. As negociações para salvar alguns metros da Mate Real estão à mesa. Fontes da Fundação Cultural – que rege o patrimônio municipal – indicam que a fachada e a torre da fábrica serão preservadas. O IFPR estuda deixar um pedaço da fábrica em pé, com maquinário à mostra, para visitação. O resto viria abaixo. Para o futuro, sobrará a fúria dos aprendizes liderados por Edílson.
Escola está imersa no passado fabril do velho bairro Rebouças
O fato de parte do IFPR funcionar, nos últimos anos, numa fábrica abandonada, só lhe fez bem. O cenário de torres, processadoras com mais de 10 metros de altura, tijolos à vista, ali, por décadas, transportam os alunos para o túnel do tempo, quando a riqueza do Paraná era a erva-mate. O efeito é tanto visual quanto acadêmico.
Além da pesquisa capitaneada pelo historiador Edílson Chaves, corre outra, dos professores Wilson Lemos, Leandro Pinto e Carla Wojcik Garcia, sobre as relações entre a escola alemã, de 1869; do Colégio Progresso, de 1914; e a Escola Técnica do Comércio, de 1941. Essas instituições teriam dado origem à Escola Técnica, atual instituto. Parte das pesquisas acontecem dentro do já famoso cofre que guardava – à moda de um arquivo morto – a documentação da mais do que centenária Mate Real.
As antigas oficinas da fábrica, contudo, têm acesso restrito. Parte do piso está avariado e representaria perigo para o alunado. Uma das máquinas, inclusive, sustenta o teto do barracão.
O local parece parado há mais tempo do que de fato: teria funcionado até 2010. O destino do equipamento é uma incógnita. A torcida é para que permaneça ali, com visitação aberta, à moda dos museus de tecnologia europeus.
O local impressiona, em especial pela quantidade de roldanas que parecem saídas do filme Tempos modernos, do Chaplin. Nas paredes, marcações, a lápis, sobre o ritmo da produção. Um refeitório, ao lado, todo branco, é ambientação pronta para um filme de guerra. A plaqueta nada gentil “Papo em hora de serviço, não vai ter” completa o quadro.
Lá fora, corre uma barulhenta “João Negrão”, alheia a essa paisagem urbana que fez parte da vida de incontáveis paranaenses. Muitos, por certo, adorariam revê-la. (JCF)
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