Vídeo| Foto: Reprodução/TV Globo

Curitiba – Uma guerra bioética quase silenciosa está sendo travada no Supremo Tribunal Federal (STF). E a próxima batalha ocorre sexta-feira. Numa decisão inédita, o STF realiza a primeira audiência pública da história da casa. Em pauta, a discussão sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias: elas devem continuar? Para responder a essa pergunta, pesquisadores favoráveis ou não à manipulação dessas células foram convocados para ajudar os ministros a deliberarem sobre a questão. E o debate será contundente. Antes mesmo da sessão, os dois lados já trocam farpas na mídia e nos meios científicos.

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As pesquisas com células-tronco embrionárias foram aprovadas no Brasil em março de 2005, dentro da Lei de Biossegurança. Em maio do mesmo ano, o então procurador-geral da república, Cláudio Fonteles, ajuizou no STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) 3.510 pedindo que a permissão para a manipulação de células-tronco de embriões fosse revogada.

O argumento de Fonteles: o embrião é uma pessoa que não pode ser eliminada para pesquisas, mesmo para fins de cura. A inconstitucionalidade está, diz ele, no fato de que a Carta protege a inviolabilidade da vida no seu artigo 5.º, e que as pesquisas ferem o direito desses embriões. Conforme for a resolução final do STF, ela facilitará ou não a legalização do aborto, tema colocado de novo à apreciação da opinião pública pelo recém-empossado ministro da Saúde, o médico sanitarista José Gomes Temporão.

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A Adin deixou o mundo científico em polvorosa. O relator designado para avaliar o processo, o ministro Carlos Ayres Britto, começou a receber pressões das partes interessadas. Desde 2005, documentos de cientistas têm sido agregados ao processo com argumentos díspares. Esta avalanche inspirou a promoção da audiência pública da próxima sexta-feira para discutir o assunto.

Até agora foram convocados 17 especialistas favoráveis às pesquisas com células-tronco embrionárias. Também estão na lista 9 cientistas responsáveis por pesquisas em células-tronco adultas – encontradas em maior quantidade na medula, no cordão umbilical e na placenta, e em menor volume em outros órgãos. Este grupo é contrário às pesquisas com embriões, por considerarem um abuso da ciência. Outras pessoas podem ser ainda convocadas ou se apresentar para participar.

Posições

O marco zero da vida humana na fecundação é uma realidade incontestável para os cientistas contrários às pesquisas com embriões. O outro grupo, no entanto, não entrou ainda em um consenso sobre este aspecto. Para alguns, seria quando o embrião inicia a atividade cerebral, semanas depois da concepção. Outros defendem ainda que a vida se consolida quando os órgãos estão completos, bem mais para frente. Antes desses momentos, apontam, não haveria problemas éticos em manipular as células do embrião.

"Não acho que é uma pessoa, mas também não penso que é um material biológico trivial. Eu não acho que é qualquer grupo de pesquisa, sem experiência e objetivos bem definidos, que deveria usar isso", diz a biofísica Lygia da Veiga Pereira, a primeira a trabalhar com células-tronco embrionárias no Brasil, importadas dos EUA.

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Uma terceira corrente não nega a existência da vida na junção dos gametas, mas acha que, dependendo do fim da pesquisa, seria justificável interferir nessa vida. Posição considerada "nazista" pelo grupo contrário, em uma alusão aos testes biológicos que os cientistas de Adolf Hitler faziam com judeus durante a Segunda Guerra Mundial, por não os considerarem seres humanos.

"Não existe dúvida na ciência quanto a isso. Quando se funde o espermatozóide com o óvulo se forma um indivíduo único, irrepetível, com toda a sua carga genética. Ele segue sozinho até o tubo uterino, envia mensagens para a mãe para preparar o útero, escolhe o lugar no útero, se implanta e forma a placenta. É um indivíduo que vai construindo a sua história desde a concepção", afirma Alice Teixeira Ferreira, professora da Unifesp e da USP, pesquisadora em biologia celular e células-tronco adultas.

A geneticista Mayana Zats, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano, na USP, que estuda células-tronco embrionárias, pensa diferente. "Eu acho que nunca vai se chegar num consenso de quando começa a vida. A morte é aceita por todos: ocorre quando pára a atividade cerebral. Por isso, quando nós defendemos as pesquisas com células-tronco embrionárias usamos o mesmo critério. Antes da instalação do sistema nervoso essas células poderiam ser utilizadas em pesquisas", diz.

A tese de Mayana tem uma resposta fácil, afirma Alice. "A ciência aceita a morte cerebral porque ela é irreversível, não tem jeito de recuperar aquele cérebro. Agora, no caso do embrião, as células estão prontas para desenvolver o sistema nervoso", analisa.

Células adultas

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As células-tronco adultas também são foco de polêmica. É fato que todos os resultados obtidos com células-tronco até agora, reconhecidos internacionalmente, foram com as adultas e não no uso das embrionárias. Isso prova, apontam os cientistas contrários ao uso de embriões, que existem outros caminhos melhores e não é preciso manipular a vida.

"Existe uma lista interminável de pesquisas que deram certo com células-tronco adultas, ao contrário das embrionárias", aponta Herbert Praxedes, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense.

A outra parte não nega os resultados com as adultas, mas os considera insuficientes. "Em nenhum momento, eu sou contra as pesquisas com células-tronco adultas. Elas são tão importantes quanto as embrionárias. E não dá para dizer que a embrionária vai resolver. Mas sem pesquisa a gente nunca vai chegar a lugar nenhum", alega Stevens Kastrup Rehem, professor da UFRJ, presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências, pesquisador de células-tronco embrionárias.

As pesquisas de células embrionárias com embriões congelados há três anos não têm qualidade para curar doenças. Só para estudar o desenvolvimento celular, afirma a pesquisadora Cláudia Maria de Castro Batista, doutora em neurociências, professora da UFRJ, autora de estudos publicados sobre células-tronco adultas no Canadá e com pesquisas em andamento no Brasil. "Para isso, é possível fazer as mesmas pesquisas com células embrionárias de um chimpanzé, por exemplo. Um indivíduo da espécie humana não é uma cobaia. A ciência tem outros caminhos para chegar aos mesmos objetivos, responder às mesmas perguntas. Caminhos muito mais rápidos, mais éticos, sem danificar ou matar um indivíduo da nossa espécie", avalia.