Historicamente as batalhas costumam ter uma data oficial de começo e fim. No caso da Revolução Federalista, ela ocorreu de 1893 a 1895. Mas mesmo passados 115 anos, a impressão que se tem é de que a rivalidade entre maragatos (soldados rebeldes) e pica-paus (militares legalistas) ainda não terminou. "A briga continua por causa da tradição oral, das histórias passadas de pai para filho e não morre porque netos e bisnetos recontam os fatos. A raiva permanece mesmo que às escondidas, aos cochichos. Digo que os dois lados estão certos e errados", afirma a escritora e historiadora Maria Thereza Lacerda, que lançou este ano o projeto de paz entre os dois grupos, batizado de História do Cerco da Lapa. De fato parece que ela meteu a mão em um vespeiro é como Maria Thereza define as desavenças que tem ouvido entre famílias descendentes tanto de maragatos como de pica-paus. O Cerco (1894) é apenas um pedaço dos episódios da Revolução Federalista, mas deixou marcas profundas na pequena população da Lapa. Maria Thereza conta que há uma família de herdeiros de maragatos que quer trazer o parente morto no Cerco atualmente enterrado no Rio Grande do Sul para ficar junto aos pica-paus no Panteon dos Heroes. A questão é que no Panteon estão enterrados apenas pica-paus, como o general Carneiro e, segundo Maria Thereza, a discussão na Lapa é a de que os dois rivais não poderiam estar enterrados lado a lado.
E não para por aí. A historiadora diz ter ouvido de uma família que uma noiva, que era filha de maragato, não poderia casar com um noivo descendente de pica-pau. "A frase foi dita em pleno dia do casamento. Isso não se faz", comenta. Até para erguer um monumento na Lapa em homenagem aos maragatos tem sido difícil. "Havia um projeto, mas não saiu do papel", diz.
O retrato traçado pela neta de um coronel pica-pau (sim, Maria Thereza é descendente de pica-pau) assusta quem está longe do assunto. "Parece bobagem, pois é estranho pensar que depois de tanto tempo as pessoas tenham picuinhas por causa de uma revolução do passado. Eu sofri hostilidades sem saber por quê. Fui atrás da história, porque acredito que somente sabendo a verdade teremos a libertação. Os dois grupos tinham seus motivos e devemos respeitá-los", afirma. Maria Thereza lembra que, no ano passado, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2009 como o Ano Internacional da Reconciliação. "Quando vi judeus e palestinos em uma mesma orquestra imaginei que maragatos e pica-paus poderiam sentar à mesma mesa também, sem desavenças."
Alguns passos já foram dados. Em fevereiro deste ano, período em que é lembrado o ano da morte do general Carneiro, a encenação do Cerco da Lapa mudou de lugar: ao invés de ser na frente do Panteon, foi no Teatro São João. No final da peça, uma criança vestida de maragato e outra de pica-pau soltaram bexigas brancas pela paz. "Uma epígrafe do escritor Jorge Luis Borges resume tudo: modificar o passado não é modificar um só fato, é amenizar suas consequências que tendem a ser infinitas", afirma Maria Thereza. O projeto de paz lançado pela historiadora em parceria com a prefeitura da Lapa (secretarias de Educação e Cultura) incluiu ainda um aprofundamento no ensino de História nas escolas, principalmente sobre o Cerco da Lapa, mostrando sempre as motivações que levaram pica-paus e maragatos à revolução.
Em junho deste ano aconteceu uma pequena demonstração de que a bandeira branca está sendo erguida definitivamente na Lapa. Uma placa em homenagem aos dois grupos combatentes foi pendurada do lado de fora do Panteon. Na ocasião, a descendente de pica-pau Maria Thereza discursou ao lado de um maragato Walter Jobim que veio para representar o seu irmão maragato, o ministro da Defesa, Nelson Jobim.