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Um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados pode dar aos animais direitos patrimoniais, como o de receber e deixar herança.
Um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados pode dar aos animais direitos patrimoniais, como o de receber e deixar herança.| Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Um projeto de lei, que tramita na Câmara dos Deputados, concede privilégios - no mínimo curiosos - aos animais, como acesso à Justiça para reparação de danos morais. Se aprovado como está, os pets poderão até receber herança e deixar seus bens para sua respectiva prole. A proposta, que agrega direitos a animais domésticos até então restrito a pessoas, compôs a pauta da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF) na última semana.

Termos como “família multiespécie” e “pais humanos”, que davam um toque quase cômico ao texto inicial do PL 179/2023, foram retirados pela relatora Franciane Bayer (Republicanos-RS). Apesar da melhora, o parecer da deputada ainda necessita de ajustes, segundo especialistas em Direito Civil ouvidos pela Gazeta do Povo. Um dos pontos críticos está relacionado à aplicação da expressão “guarda”, termo jurídico usado exclusivamente para filhos menores.

Para juristas, artigo que dá acesso à Justiça deve ficar mais claro

A proposta declara que os animais teriam assegurados o direito fundamental de “acesso à justiça, para prevenção e/ou reparação dos danos materiais, existenciais e morais, aos seus direitos individuais e coletivos”. Embora alguns tribunais já tenham adotado essa possibilidade em casos isolados, a ideia é considerada uma inovação na legislação brasileira.

“Não é o animal de estimação que tem acesso à Justiça. É a pessoa que cuida do animal, é a pessoa que zela pelo bem-estar do animal, seja dono ou não”, aponta Regina Beatriz Tavares, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões e sócio fundadora do Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados. A especialista acrescenta que o ideal seria que ficasse explícito no próprio texto que esse acesso à justiça é do tutor.

Marcel Simões, doutor em Direito Civil pela USP, concorda que a redação permite o entendimento de que o próprio animal teria direito ao acesso à Justiça, prevenção e reparação de danos. “Esses reconhecimentos trazem algumas questões que precisam ser enfrentadas, numa posição realista, que não atribua mais direito aos animais que aos seres humanos”, analisa.

Simões explica ainda que a proposta não considera expressamente que os animais sejam reconhecidos como pessoas no âmbito jurídico. Ao mesmo tempo, ressalta que há trechos que dão margem para que eles sejam reconhecidos como sujeitos de direitos. Segundo o jurista, países como França, Portugal e Argentina já adotaram mudanças jurídicas nas quais os animais deixaram de ser considerados objetos e passaram a ser sujeitos de alguns direitos.

Em caso de morte do animal, a prole poderá usufruir dos bens do falecido

Um dos incisos do artigo 9º afirma que compete aos tutores “administrar patrimônio ou rendas que possam ser atribuídos ao animal”. Ainda sobre as questões patrimoniais dos animais, a proposta pretende assegurar que os bens podem ser recebidos por testamento e devem ser usados exclusivamente com o animal.

“Os animais não têm personalidade jurídica, por isso eles não têm patrimônio ou rendas em nome próprio. Isto aqui seria uma forma de atribuir personalidade jurídica. É o tutor do animal quem tem patrimônio ou rendas, quem os administra para sustentar e cuidar bem do animal”, analisa Tavares. Hoje, o direito brasileiro considera que apenas pessoas podem receber herança.

Outra inovação jurídica que a proposta possibilita é o recebimento de herança por parte dos filhotes, em caso de morte do animal. De acordo com o texto, os bens deixados poderão ser usados “em benefício exclusivo da respectiva prole ou de outros animais pertencentes à mesma família multiespécie, mantido o dever de prestação de contas”.

“É possível uma adequada proteção jurídica aos animais seja como objeto de direito, como está na nossa lei hoje. Assim como é possível uma mudança na lei para tratá-los como sujeitos de alguns direitos patrimoniais e protetivos como já foram feitos em outros países. Parece estranho e esquisito, mas é viável tecnicamente. Precisa saber se há um desejo da sociedade”, avalia Simões.

Termo “guarda”, usado para filhos menores de idade, é usado para animais

Para os dois juristas ouvidos pela Gazeta do Povo, atualmente a área de Direito de Família possui recorrentes problemas quando se trata do destino dos animais em casos de processos judiciais, como separação entre casais. Isso porque, normalmente, ambos desejam a companhia dos pets.

A utilização do termo guarda não é uma novidade do projeto de lei, já que recentemente se tornou presente na jurisprudência. Para resolver o problema da convivência com o casal após o fim da união, o Judiciário tem aplicado aos pets um sistema parecido ao da divisão de tempo dos pais com os filhos menores.

“O termo guarda tem sua origem e função jurídica voltada à proteção dos filhos menores de um casal, portanto à proteção dos seres humanos. Isso não está dignificando os animais, mas de certa forma, rebaixando, no tratamento, os seres humanos”, considera Simões. Ele explica que as soluções apresentadas pelo Judiciário, em sua visão, são adequadas, mas que a utilização do termo “guarda” deveria ser evitada. “Parece-me mais o sintoma de uma mistura de conceitos jurídicos e éticos, um mau entendimento social”, acrescenta.

Tavares complementa que a expressão “custódia” poderia substituir o termo guarda, sendo mais adequada. “Eu sou totalmente contra a utilização da expressão guarda, porque guarda é uma expressão consagradamente usada para filhos menores, crianças ou adolescentes, na hipótese de separação do casal”, reitera.

A própria relatora, Franciane Bayer, pediu a retirada do projeto de lei da pauta da Comissão. Segundo a assessoria da parlamentar, o texto já foi bem trabalhado e ela o considera maduro para votação. Apesar disso, Bayer está disposta a realizar ajustes no texto, se necessário, e está aberta a sugestões. Além da CPASF, o projeto de lei deve passar pela Comissão de Meio Ambiente e de Constituição e Justiça e pelo plenário da Câmara antes de seguir para o Senado Federal.

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