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No começo de abril, parlamentares disseram reservadamente à reportagem da Gazeta do Povo que membros da cúpula do Judiciário estariam fazendo pressão pela aprovação do PL das Fake News no Congresso. “O TSE [Tribunal Superior Eleitoral] sentou com o [deputado Arthur] Lira [presidente da Câmara] e disse que, se a Câmara não votasse, eles fariam uma regulamentação por resolução”, chegou a afirmar um deles.
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Essa não teria sido a primeira vez, nos últimos meses, que membros do TSE e do Supremo Tribunal Federal (STF) atuam diretamente para influenciar uma tramitação de projeto no Congresso. Em agosto do ano passado, durante uma manifestação, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) afirmou que havia pressão de ministros do TSE e do STF contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do voto impresso auditável, e que isso estaria fazendo alguns parlamentares mudarem seu voto. A PEC acabou sendo rejeitada na Câmara.
Para o senador Eduardo Girão (Podemos-CE) – que, recentemente, fez um requerimento para que o ministro do STF Alexandre de Moraes fosse ao Senado discutir o inquérito contra o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) –, a influência política da cúpula do Judiciário é “explícita”. “Virou uma casa política. Querem mostrar que estão acima dos outros poderes e não respeitam a independência deles. Basta lembrar que, no ano passado, sobre a questão do voto auditável, o presidente do TSE na época, o (ministro Luís Roberto) Barroso, foi à Câmara e fez reunião com as lideranças partidárias, e a comissão que estava montada com certo número de parlamentares com certas posições foi desmontada, e entraram outros contrários ao voto auditável, e o negócio foi para o espaço. É uma interferência política, uma manipulação grande. Perdeu-se o pudor”, critica ele.
O deputado Paulo Eduardo Martins (PL-PR), que foi presidente da comissão da PEC do voto impresso, relata que “a maioria dos membros era favorável à mudança constitucional, até que o Supremo Tribunal Federal, mais especificamente o ministro Barroso, entrou em campo”. Publicamente, sabe-se que o magistrado teve uma reunião em junho com os presidentes de partido para falar sobre o voto impresso. Para Martins, a virada de jogo que ocorreu depois dessa reunião dá razão para suspeitas. “Depois daquela reunião, os partidos trocaram os membros da comissão. Eu não estava lá, mas é muita coincidência, não? Uma reunião para tratar disso, e vira completamente o jogo.”
Atuação político-partidária do Judiciário é inconstitucional
Martins não vê nada de errado em um diálogo harmônico entre membros dos três poderes, mas lembra que cada poder deve respeitar seus limites constitucionais. “Uma conversa entre o Judiciário e Legislativo é normal. Uma conversa. Isso é normal. Os poderes existem, são harmônicos, o cara está ali do outro lado… Ele pode me receber, solicitar que eu vá lá, ou o contrário… E os poderes podem contribuir com as suas experiências entre si. Isso é uma coisa. Outra coisa é fazer intimidação, um lobby público ou ameaças. E isso tem acontecido, e não é de agora”, diz.
O professor Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP, recorda que ministros de tribunais superiores, assim como qualquer juiz, não podem se envolver publicamente em discussões político-partidárias. “A Constituição diz, no artigo 95, que o membro do Judiciário não pode ter atividade político-partidária. Isso significa que, embora existam certamente nos tribunais superiores decisões que de alguma maneira têm um cunho político, não poderia o membro do Poder Judiciário de qualquer nível, da primeira instância até o Supremo, adotar uma posição político-partidária. Isso quer dizer não apenas a vedação da pertença a partidos, mas também da defesa de determinada posição política. Isso não cabe ao Poder Judiciário”, afirma.
Para ele, as recentes declarações de Barroso na Brazil Conference, evento realizado em Boston, nos Estados Unidos, vão contra esse princípio constitucional. O juiz disse que “é preciso não supervalorizar o inimigo” e, dirigindo-se aos outros participantes da conversa, entre eles a deputada Tabata Amaral (PSB-SP), completou: “Nós somos a democracia. O mal existe e precisamos enfrentá-lo, mas o mal não pode mais do que o bem”.
“O Barroso estava falando em como derrotar determinado candidato. Isso é um absurdo. É um partidarismo escancarado, coisa que não deveria existir. E isso acaba levando à erosão da confiança das pessoas nas instituições”, diz Chiarottino. “Isso não quer dizer que o juiz não tenha suas convicções e seus posicionamentos políticos, como qualquer outra pessoa. Mas, na sua ação como magistrado, ele não pode jamais assumir uma posição partidária. E é isso o que a gente está vendo”, acrescenta.
Para o professor, falta a alguns membros do Judiciário brasileiro o que em inglês se chama de “judicial self-restraint”, isto é, a autocontenção judicial, princípio segundo o qual o Judiciário deve ser ponderado na interpretação da lei, evitando inovações que extrapolem o texto constitucional. Trata-se de um valor contrário ao ativismo judicial em voga no Brasil.
“O juiz, idealmente, não deve tomar uma posição de extrema exposição pública, muito menos quando essa posição ocorre no sentido de privilegiar determinado partido, determinado candidato, determinada linha ideológica. Assim fazendo, os tribunais vêm erodindo a sua autoridade. Embora tenhamos uma grande maioria de bons juízes, alguns membros da cúpula do Judiciário não vêm dando o bom exemplo republicano. Pelo contrário: vêm dando um exemplo de partidarismo, de protagonismo”, critica Chiarottino.
Sobre o diálogo entre o Judiciário e o Legislativo, o especialista traça uma linha entre o que se pode fazer e o que é ilícito: “Em princípio, o ministro ir ao Congresso, enquanto representante da instituição, discutir uma legislação, não haveria nisso problema nenhum. Seria uma coisa perfeitamente lícita. Agora, quando isso acaba se transformando em parte de uma guerra política que envolve facções partidárias, grupos de partido, facções ideológicas, e o ministro toma partido, aí, evidentemente, há um desvirtuamento da função institucional.”
Por outro lado, para Chiarottino, se essa influência é exercida com tanta facilidade, isso também pode denotar que o Legislativo está mais maleável do que deveria. “Os parlamentares são pessoas bastante crescidinhas. Se eles modificam um projeto porque houve influência, houve sugestões, isso aí não retira a responsabilidade deles”, salienta.