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O projeto de lei das Fake News vai a votação nesta terça-feira (2) no Plenário da Câmara. A proposta, focada no tema da responsabilidade das redes sociais em relação a conteúdos publicados por terceiros, entrou em regime de urgência na semana passada com o voto a favor de 238 parlamentares.
O texto que será analisado pelos deputados, de relatoria de Orlando Silva (PCdoB-SP), foge de algumas controvérsias geradas nas últimas semanas por minutas que circularam antes da versão definitiva. Ainda assim, juristas consultados pela Gazeta do Povo enxergam aspectos preocupantes da proposta para a liberdade de expressão nas redes sociais. Não está excluída, além disso, a possibilidade de alteração do documento até a hora da votação.
Entre os principais pontos negativos do PL estão a possibilidade de obrigar as plataformas a serem mais proativas em derrubar conteúdos, a entrega do monopólio da verdade ao Estado, o privilégio concedido aos grandes veículos de imprensa, a falta de abertura das propostas ao debate público, a falta de clareza de algumas ideias e a hipótese de afugentar algumas redes sociais do Brasil.
Os juristas também levantam alguns pontos positivos do texto final, não tanto em relação a suas virtudes, mas principalmente quanto a defeitos que, ao menos na versão divulgada na quinta-feira (27), foram amenizados. Orlando Silva decidiu recuar em relação a algumas ideias presentes em propostas anteriores e revisar pontos polêmicos.
O advogado Igor Costa Alves, especialista em Direito Constitucional e mestre em Direito pela Universidade de Lisboa, cita "a inclusão da liberdade religiosa como um dos princípios balizadores da lei" e a exclusão da ideia de uma entidade autônoma de supervisão como alterações positivas. Em minutas que circulavam antes da divulgação do texto final, a criação dessa entidade, que funcionaria como uma agência reguladora com grandes poderes sobre as redes sociais, era apontada como um dos maiores riscos do PL das Fake News.
Pedro Moreira, doutor em Filosofia do Direito pela Universidad Autónoma de Madrid, diz que "o texto final apresentado pelo relator é muito menos danoso" e concorda que "a retirada da 'entidade autônoma de supervisão' foi um passo importante", mas ressalta que "a proposta ainda é preocupante".
Para Janaina Paschoal, ex-deputada estadual de São Paulo e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), "o projeto é muito pior do que vem sendo alardeado" e "é muito mais grave do que parece". Richard Campanari, advogado e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, destaca as ameaças à liberdade de expressão que a proposta carrega.
Confira em detalhes as principais preocupações levantadas por juristas.
Plataformas precisariam ser mais proativas em derrubar conteúdos
Diante da imposição de maior responsabilização às redes sociais – principal novidade do projeto de lei –, as empresas donas dessas plataformas se veriam obrigadas a agir mais proativamente na censura de conteúdos publicados por terceiros, o que acrescentaria uma camada de censura àquela que já vem sendo imposta pelo Judiciário brasileiro nas redes sociais.
Um dos dispositivos do projeto fala na instauração de "protocolos de segurança" quando houver "risco iminente de danos" – categoria com definição subjetiva. Isso pode gerar situações em que, por exemplo, uma rede social sofra censura ao não coibir a convocação para um protesto contra uma instituição do Estado, a depender da interpretação que o Judiciário ou o órgão regulador da lei faça de "risco iminente".
"Há discursos que são claramente ilícitos. Mas há uma zona naturalmente cinzenta, em que opiniões legítimas podem apenas parecer ilícitas. É muito difícil definir isso objetivamente. Pelo projeto, as plataformas podem responder solidariamente se não cumprirem adequadamente com o seu 'dever de cuidado', se não moderarem devidamente o conteúdo postado por terceiros. Nos casos que envolvem opinião, o risco é que a plataforma, para evitar a responsabilização, adote como padrão aceitável, sobretudo em assuntos polêmicos, as opiniões da moda, politicamente corretas, mas que podem estar longe da incontrovérsia ou da verdade", diz Pedro Moreira.
O resultado de uma imposição abusiva do "dever de cuidado", segundo os juristas, pode ser a derrocada da liberdade de expressão nas redes sociais. Para Richard Campanari, alguns dispositivos do projeto "podem atentar contra o direito à privacidade e à liberdade de expressão, especialmente ao preverem a obrigação das plataformas de cuidarem de 'conteúdos críticos'". Ele recorda que "a liberdade de expressão é um direito fundamental garantido pela Constituição, e sua supressão poderia nos levar a um estado autoritário, cujas consequências nefastas são vistas em países como Venezuela, Nicarágua e Coreia do Norte".
Campanari diz ainda que o projeto "cria a possibilidade de o Estado monopolizar a verdade, o que, em seu aspecto político, poderia dificultar significativamente o exercício do debate e das críticas, além de permitir um poderoso controle de narrativas". "Isso poderia levar a uma situação em que apenas uma versão dos fatos fosse aceita, prejudicando assim a própria democracia e a construção de um espaço público plural – e isso poderia ser um instrumento utilizado por quaisquer dos lados políticos", comenta.
Para ele, o combate às notícias falsas "pode ser feito de maneira muito mais eficaz por meio da promoção de informações de qualidade e da educação para o pensamento crítico, sem a necessidade de censurar o que pode ou não ser dito", e os excessos devem ser apurados "por meio dos instrumentos legais já disponíveis e que foram aprimorados ao longo de décadas".
Democratização da informação em crise
Além de exigir que as redes intensifiquem seu papel de vigilância, aumentando o potencial de censura a conteúdos que fujam do politicamente correto, o projeto demanda a remuneração a meios jornalísticos pelas plataformas quando seus conteúdos forem veiculados nas redes. "Isso, à toda evidência, tem o potencial de reduzir muito o alcance das informações veiculadas pelas redes sociais, o que implicará o retrocesso ao monopólio da informação pelos grandes veículos de comunicação", afirma Igor Costa Alves.
Janaina Paschoal critica a reação positiva de parte da classe jornalística a esse trecho do projeto. "Eu sei que muitos jornalistas estão aplaudindo, mas eu vejo como uma ilusão, porque um jornalista que venha a ser demitido e não consiga uma contratação em outro veículo poderia abrir o seu canal no YouTube. E, se o YouTube tiver que pagar por todo e qualquer comentário sobre uma matéria elaborada por outro veículo, não vai poder remunerar esses jornalistas autônomos", diz.
Debate foi feito de forma apressada e com pouca abertura à sociedade
Os juristas criticam fortemente a falta de abertura ao debate e o açodamento na tramitação do projeto. "Este PL não está sendo discutido no tempo ou no espaço adequado. A temática trazida por ele, ainda que propositivamente bem intencionada, exige um debate público equilibrado, maduro e pautado nos direitos mais básicos e fundamentais de nossa Constituição – liberdade de expressão e pensamento são um exemplo. E isso, esse equilíbrio e maturidade, na minha sincera opinião, é tudo de que não gozamos em nosso país neste momento", diz Campanari. "Em vez de soluções apressadas e que possam prejudicar direitos fundamentais, é preciso um debate amplo, com participação da sociedade civil, dos meios de comunicação e dos especialistas em tecnologia e direitos humanos", complementa.
Texto do PL das Fake News é confuso e impreciso em diversos trechos
Outro problema do PL das Fake News na versão divulgada na quinta-feira é a imprecisão do texto e a falta de definição clara sobre quais órgãos seriam responsáveis por garantir o cumprimento de cada dispositivo da lei. Essa nebulosidade é preocupante por abrir espaço, por exemplo, a interpretações posteriores que permitam a criação de órgãos reguladores com poder de censura, ou decretos de viés autoritário com o alegado propósito de regulamentar a lei.
Alessandro Chiarottino, professor de Direito Constitucional e doutor em Direito pela USP, ressalta que há "determinações imprecisas tais como 'limitar a possibilidade de envio de mensagens em massa', sem oferecer qualquer explicação do que seria isso".
"O único tipo penal criado também é bastante mal construído, tecnicamente falando", acrescenta Chiarottino, em referência ao artigo 50 da lei, que fala em prisão de 1 a 3 anos a quem "promover ou financiar" por meio de conta automatizada a divulgação de "fato que sabe inverídico, que seja capaz de comprometer a higidez do processo eleitoral ou que possa causar dano à integridade física e seja passível de sanção criminal".
Para Janaina Paschoal, a imprecisão desse trecho pode abrir espaço a todo tipo de interpretação. "Por exemplo, uma vez eu peguei um documento do site da Anvisa e o li no meu Instagram, e o Instagram derrubou dizendo que era fake news. Como é que vai ser agora? Eles estão criando um crime. Então, se um veículo de imprensa regular manda por meio de uma lista de transmissão de WhatsApp um texto, por exemplo, ou um estudo falando de efeitos colaterais da vacina, poderia caracterizar o delito, entende? É muito mais grave do que parece", comenta.
Janaina critica também um trecho que dá ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) a tarefa de resolver casos de abusos das plataformas sobre as empresas jornalísticas. O texto menciona "atos de infração à ordem econômica do provedor de aplicação que abuse de sua posição dominante na negociação com as empresas jornalísticas". "O Cade não tem nada a ver com esse assunto de liberdade, de regulação, de fake news. Nada. Zero. O Cade, com todo o respeito, já não está dando conta de julgar os temas que lhe são próprios. Por exemplo, às vezes há fusão de duas empresas, e o Cade fica anos para dar uma resposta. O que é que o Cade tem a ver com isso?"