Meninas serão presas por abortarem? O estuprador será beneficiado com o "PL do aborto"? A pena para a vítima será maior que a do estuprador? Essas são algumas das questões que surgem nas discussões públicas, alimentadas por narrativas e desinformações nas redes sociais. A falta de conhecimento jurídico sobre a proposta e a polarização do tema fortalecem slogans simplistas, distorcendo o debate. O projeto de lei 1904/2024 pretende equiparar a pena da realização de aborto após a 22ª semana ao crime de homicídio. O prazo é definido pela condição da viabilidade fetal, quando o bebê já possui condição de sobrevivência fora do ambiente uterino.
A sensibilidade do tema e a repercussão na mídia devem levar os deputados a adotarem uma posição de cautela. A votação do requerimento foi simbólica – quando não há contagem de voto no painel –, o que indica que o assunto estava bem articulado com os líderes dos partidos. A data para o projeto de lei entrar na pauta do plenário depende do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). O cenário atual aponta que a apreciação do texto, a princípio prevista para semana que vem, está cada vez mais incerta.
Projeto equipara aborto de feto viável a homicídio simples
Para a especialista em Relações Governamentais e presidente do Instituto Isabel, Andrea Hofmann, por ser um projeto mais técnico que exige um certo conhecimento jurídico para entendê-lo, há mais facilidade de as narrativas ganharem espaço. “Está havendo uma confusão porque aborto não é política pública. Então, a proposta é que as mulheres que chegarem nesse tempo de gestação esperem, com todo o acolhimento necessário e o apoio psicossocial, pelo fim da gestação”, explica.
O aborto é crime no Brasil, não punido em casos de estupro e risco de vida para a mulher (artigo 128 do Código Penal) ou quando o bebê sofre de anencefalia, por decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal. O projeto de lei prevê, no entanto, que deve ser aplicada uma punição em qualquer caso quando o aborto for realizado após a 22ª semana. Com o feto obtendo condições de sobrevivência fora do útero, o crime passaria a ser equiparado ao homicídio.
O projeto de lei acrescenta, nos artigos do Código Penal que tratam sobre o aborto, que “quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”. No artigo 124, que trata sobre a mulher que provoca o aborto em si mesma ou o consente, também é acrescentado que o juiz poderá diminuir a pena de acordo com as circunstâncias individuais ou “até mesmo deixar de aplicá-la” se considerar desnecessária.
“Em primeiro lugar, deve ser observado que se está diante de duas condutas distintas, cometidas em momentos autônomos, por pessoas diferentes: um é o crime de estupro, tendo por vítima a pessoa estuprada; outro, o de aborto, cuja vítima é a pessoa em gestação no ventre da mãe”, aponta Lucas Silva Machado, delegado de polícia e professor da Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará.
Proposta não torna pena de vítima maior que a de estuprador e nem prevê prisão para menores
“O texto proposto no PL 1904 não beneficia o estuprador em absolutamente nada. Qualquer alegação apontada nesse sentido seria uma argumentação falaciosa no sentido de se aproveitar das polêmicas que envolvem a discussão sobre o aborto. O criminoso que pratica o delito de estupro continuará sendo responsabilizado por essa conduta”, ressalta Machado. O especialista acrescenta que o crime de estupro é considerado hediondo e, por isso, possui as implicações penais e processuais mais severas do ordenamento jurídico.
O slogan “Criança não é mãe. Estuprador não é pai”, adotado pelos defensores do aborto, pode passar a ideia de que meninas menores de idade que cometessem o aborto após a 22ª semana poderiam ser presas. “A rigor, o menor de idade não comete crime, mas ato infracional, consequentemente, a sanção prevista para esse tipo de conduta não é a prisão, mas a aplicação de medidas específicas, no caso de criança, ou socioeducativas, se for adolescente, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente”, esclarece o delegado.
Um dos argumentos dos movimentos pró-aborto é que o estuprador teria a pena menor que a da mãe que abortasse o filho depois da 22ª semana. A pena do homicídio simples, que seria aplicada no caso do aborto após o prazo delimitado, é de 6 a 20 anos. Já a de estupro simples pode chegar a 10 anos e, em caso de morte da vítima, a 30 anos. Como resposta, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) deve apresentar uma emenda para aumentar a pena do crime de estupro.
“O crime de aborto simples continuará a ter a pena máxima de 3 anos, essa modalidade não sofrerá qualquer mudança, algo que não está sendo comentado. Em relação ao agravamento dos crimes, se comparado o previsto no projeto para o aborto após a 22ª semana à pena do estupro acompanhado de lesão corporal ou morte da vítima, a punição quantitativa em anos ainda seria mais severa para o delito de estupro”, reitera Machado.
Capacidade de mobilização pode definir futuro do PL do aborto
“A questão do aborto é, fortemente, uma questão de discurso, de retórica. Os próximos passos vão depender da capacidade de mobilização dos dois lados, especialmente de agentes que tenham um bom eco na opinião pública. O que veremos nos próximos dias, provavelmente, serão apelos dos dois lados. Penso que o presidente não está disposto a enfrentar um desgaste já na próxima semana”, prevê o cientista político Felipe Rodrigues.
“Com toda a reação midiática que houve em relação ao projeto de lei e narrativa em torno dele, isso faz com que os políticos acabem recuando. Então, já houve algumas declarações de que o mérito não seria votado ou que passaria pelas comissões do Senado”, analisa Andrea Hoffmann. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), afirmou que uma proposta como essa “jamais iria diretamente ao plenário”.
Por um lado, um dos autores do projeto de lei, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), compõe a mesa diretora da Casa e está próximo de Lira. Por outro, o governo Lula já teria começado a articular um acordo para adiar a votação do texto. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), informou durante um evento no Paraná que deve designar uma parlamentar de perfil moderado para a relatoria da proposta.
Rodrigues acredita que o projeto deve sofrer alterações antes de ser pautado, já que a repercussão negativa pode afetar outros interesses dos deputados. “É um assunto que divide a opinião pública. Também estamos em um contexto de eleições municipais de aproximando – onde não sabemos até onde essa polarização vai se replicar – e a disputa pela eleição a presidente da Câmara”, reitera. Lira chegou a restringir o recebimento de comentários em sua página no Instagram.
Projeto é mais uma resposta do Congresso ao STF
O projeto de lei 1904/2024 foi apresentado após a suspensão cautelar, do Supremo Tribunal Federal, de uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia a assistolia fetal após a 22ª semana de gestação. A assistolia fetal é um procedimento em que o médico, ao injetar cloreto de potássio, paralisa voluntariamente o coração do bebê. Para o CFM, além de dolorosa, a técnica é desnecessária, já que o bebê – com ou sem vida – ainda precisaria passar por uma via de parto.
No primeiro mês de governo Lula, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, revogou uma portaria que previa que os médicos acionassem a polícia em caso de gestações decorrentes de estupro. Em fevereiro de 2022, a pasta chegou a apresentar uma nota técnica que retirava a limitação de 21 semanas e 6 dias para a realização do aborto. O documento foi suspenso no dia seguinte após a reação da oposição.
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