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A Operação Tempus Veritatis, deflagrada pela Polícia Federal (PF) no dia 8 de fevereiro a mando do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), tem suscitado controvérsias no meio jurídico por diversos de seus aspectos. A própria tese-chave da operação, de que teria havido um plano para golpe de Estado em 2022, é contestada por alguns juristas.
Também há divergências sobre a possibilidade de criminalizar as condutas dos envolvidos. Especialistas consultados pela Gazeta do Povo têm visões diferentes tanto sobre o texto do Código Penal relacionado ao assunto como sobre a interpretação dos fatos investigados.
A ação judicial tem como alvos alguns políticos e figuras militares ligadas a Jair Bolsonaro, além do próprio ex-presidente. A investigação revelou a existência de uma minuta de decreto que propunha a prisão de Moraes e a convocação de novas eleições presidenciais. As novas acusações se baseiam principalmente na delação de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, e em um vídeo que mostra o ex-presidente questionando a confiabilidade das urnas eletrônicas diante de seus ministros.
Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP, é taxativo em dizer que, pelo menos tendo em vista aquilo que se tornou público até agora, as autoridades envolvidas não cometeram crime. Ele observa que, no Direito Penal brasileiro, atos preparatórios não são puníveis, especialmente em tipos penais como o de "abolição violenta do Estado Democrático de Direito" (artigo 359-L do Código Penal) ou "golpe de Estado" (artigo 359-M), que exigem violência ou grave ameaça. "Tudo o que não ocorreu, até onde sabemos", afirma.
Fabio Tavares Sobreira, professor de Direito Constitucional e especialista em Direito Público, também destaca que planejar ou mesmo preparar um crime não são atos puníveis no Brasil. O Código Penal brasileiro, explica Sobreira, é adepto do conceito de iter criminis, que significa “caminho ou itinerário do crime”. Esse caminho é composto por quatro etapas: cogitação, preparação, execução e consumação do crime.
As duas primeiras etapas nunca são puníveis segundo o Código Penal. Para Sobreira, no caso em questão na Operação Tempus Veritatis, não houve nem sequer cogitação de um crime.
Rodrigo Chemim, professor de Processo Penal da Universidade Positivo e doutor em Direito do Estado, apresenta uma visão diferente. Ele concorda que, com relação ao artigo 359-L do Código Penal, não houve crime em nenhuma das condutas citadas.
Sobre o artigo 359-M, no entanto, Chemim vê uma possível vinculação com o dia 8 de janeiro, em que, para ele, "houve efetivamente violência com esse propósito [de golpe]". "Quem agiu nesses termos naquele dia praticou o crime de tentativa de golpe de Estado. E, nos termos do artigo 29 do Código Penal, 'quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade'", avalia.
Para Chemim, pode responder criminalmente tanto quem agiu diretamente nos atos violentos do 8/1 como quem os incitou ou instigou. "É preciso, enfim, que haja prova de que os envolvidos atuem com intenção de contribuir para o resultado criminoso. Havendo prova dessa incitação ou instigação, responderão na medida da sua culpabilidade. Também é importante dizer que não é necessário demonstrar a existência de prévio ou expresso ajuste de vontade entre as partes. É suficiente que o agente tenha ciência de que, com sua conduta, colabora para o resultado criminoso", complementa.
Janaina Paschoal, doutora em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), expressa surpresa com a revelação de que a minuta em questão foi considerada e debatida, mas ressalva que, sem acesso à íntegra dos autos, não é possível emitir uma opinião justa sobre o caso. Ela argumenta que a delação de Cid e as subsequentes operações policiais elevaram a gravidade do caso, mas, por enquanto, descarta a vinculação com os atos do 8 de janeiro, que, para ela, deveriam ser enquadrados como danos ao patrimônio público.
"Eu sigo dizendo que os populares que acabaram por depredar os prédios dos três poderes não são autores dos crimes de golpe de estado e supressão ao Estado Democrático de Direito. A meu sentir, devem responder por dano de patrimônio público. Com relação à cúpula, precisaria ter acesso à íntegra dos autos", afirma.
O advogado criminalista João Rezende destaca que a controvérsia jurídica sobre a operação policial recente acaba sendo reforçada por defeitos do próprio texto do Código Penal, comumente apontados por especialistas da área. "Os tipos penais do título 12 do Código Penal [que abarca os artigos 359-L e 359-M], que tratam sobre os crimes contra o Estado de Democrático de Direito, têm verbos nucleares muito abertos, muito genéricos, e isso acaba sendo um problema. 'Atentar contra o Estado de Democrático de Direito…' 'Atentar' é um verbo muito aberto e acaba dando margem para arbitrariedades, como acontece com qualquer previsão legal genérica", comenta.
Uma das teses usadas pelo Judiciário e pela Polícia Federal na Operação Tempus Veritatis é a de que haveria uma organização criminosa responsável pelos atos preparatórios do suposto plano de golpe. A insistência na caracterização do grupo como "organização criminosa" não é casual. Rezende explica que, na lei 12.850 de 2013, que prevê penas para a organização criminosa, um grupo de quatro ou mais pessoas organizadas hierarquicamente, voltado para a prática de um crime, pode ser enquadrado nessa lei, ainda que esteja na etapa preparatória do crime.
Nome "minuta do golpe" é enganoso, avalia jurista
Fabio Tavares Sobreira argumenta fortemente contra a prerrogativa do STF de processar o ex-presidente Bolsonaro após o término de seu mandato. Ele vai além: afirma que a minuta encontrada pela PF não é a de um golpe, mas sim a de um instrumento previsto na Constituição.
"Em primeiro lugar, o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro não é mais presidente, logo, ele não pode mais ser processado perante o STF", diz. "Em segundo lugar, talvez um dos pontos mais sensíveis e injustos ao meu ver é o argumento de que existia uma 'minuta do golpe'", diz. Para Sobreira, a intenção da minuta em questão era apoiar-se no artigo 136 da Constituição Federal para decretar estado de defesa.
"O artigo 136 da Constituição Federal autoriza o presidente da República, seja ele de direita ou de esquerda, a decretar o estado de defesa se entender que a ordem pública ou a paz social estão sendo ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional", explica.
Se o estado de defesa fosse decretado, prossegue Sobreira, o Executivo não estaria se sobrepondo aos outros Poderes de forma arbitrária, já que o Congresso Nacional deveria ser comunicado para decidir se o decreto presidencial se manteria ou não.
"Se a decisão do Congresso Nacional fosse no sentido de derrubar o decreto presidencial, cessariam imediatamente os efeitos do estado de defesa, sem prejuízo da apuração de crimes de responsabilidade praticados pelo presidente da República", completa.
"Em síntese, uma minuta ou um simples pedaço de papel que poderia ter sido materializado em decreto presidencial, que seria monitorado e ratificado ou não pelo Congresso Nacional, não pode ser suficiente para afrontar todos os direitos individuais de um ex-presidente, ministros e apoiadores, quando a própria Constituição deixa a critério do Poder Executivo interpretar o que seria uma iminente instabilidade institucional, que seria controlada pelo Poder Legislativo", resume o jurista.
Ives Gandra diz que "crime impossível" não pode ser punido
Pelo Instagram, na quinta-feira (15), o jurista Ives Gandra Martins discutiu a interpretação do artigo 359-M do Código Penal brasileiro. Ele criticou a interpretação de que simples discussões ou reuniões possam ser vistas como tentativas de golpe, defendendo que sem a viabilidade de violência ou grave ameaça, tais ações se enquadram como crimes impossíveis, que não são puníveis pelo Código Penal.
"Em Direito Penal, existe a figura do crime impossível: aquele que não é tratado como tentativa de crime. Se eu pretender, por exemplo, matar alguém utilizando açúcar, pensando que eu tinha arsênico, que é o exemplo clássico que se dá no Direito Penal, isso não pode ser considerado crime, porque a intenção não representaria o ato necessário para que o crime ocorresse, porque açúcar não mata", explicou o jurista.
Para Gandra, "é evidente que estamos perante um crime impossível". "É evidente que, para aquelas conversas poderem representar uma ameaça violenta, um golpe, com utilização de violência, uma ameaça grave, teria que ter as Forças Armadas", comentou. "Houve violência, houve possibilidade de uma grave ameaça com a utilização das Forças Armadas? Não houve. É evidente que esses vídeos não são vídeos que agradem aqueles que gostam da democracia, mas não representam, a meu ver, crime", acrescentou.