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Há quase cinco décadas, há uma área do Nordeste conhecida popularmente como “Polígono da Maconha”, que abriga grandes plantações da droga, abrangendo principalmente municípios do sertão da Bahia e de Pernambuco. Dados da Polícia Federal (PF) de 2019 e 2020 sugerem que o alcance geográfico de plantios do tipo pode estar aumentando, chegando aos estados do Maranhão e do Pará e penetrando a floresta amazônica.
Em 2019, segundo um relatório da PF obtido pela Gazeta do Povo, a polícia encontrou e destruiu plantações nesses dois estados com um peso projetado de 97,3 toneladas de maconha e uma área de 239,8 mil m², o que equivale a cerca de 33 campos de futebol.
A descoberta de plantios no Pará e no Maranhão não é novidade, pois já havia ocorrido em 2015 e em 2011, mas a quantidade encontrada em 2019 chama a atenção: correspondeu a 20,4% do total erradicado pela PF no Brasil em 2019. Um dos municípios mencionados pelo relatório como alvo de operações no ano passado, Concórdia do Pará, fica próximo à Bacia do Capim, que chega à Baía do Marajó, de onde a maconha costuma sair para grandes centros do Brasil.
No total, em 2019, a polícia destruiu 1,6 milhão de pés de maconha no Brasil, contra 968 mil em 2018. O recorde dos últimos dez anos ocorreu em 2017, quando a PF erradicou 1,9 milhão de plantas de maconha. Em 2020, considerados dados que vão até o dia 10 de julho, o número já é maior que o de 2018: 983 mil pés de maconha destruídos.
Focos de plantio de maconha se pulverizam e carregam a criminalidade
Segundo Luis Flavio Sapori, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Segurança Pública da PUC Minas, o crime organizado busca alternativas para fugir da fiscalização feita no Polígono da Maconha, o que provoca uma pulverização dos focos de plantio.
“O Polígono da Maconha é um conhecido de décadas no Brasil. Não é nenhuma novidade. A intensificação da repressão a esse centro produtor sem dúvida aumentou os custos e levou a perdas dos produtores da maconha”, afirma.
Segundo Sapori, “pulverizar o centro produtor é uma estratégia racional lógica, porque dificulta a fiscalização”. “Quanto mais concentrados os territórios, maior a capacidade da tecnologia disponível hoje de verificar e reprimir. À medida que você pulveriza, não há dúvida de que a dificuldade fica bem maior para a vigilância e a fiscalização”, afirma.
Outro fator que pode explicar o processo migratório para áreas mais interiorizadas é o isolamento. “Há rincões do Norte e Nordeste com baixo grau populacional. Regiões longínquas, fazendas, terras mais afastadas de centros urbanos… Certamente isso dificulta a fiscalização”, destaca Sapori.
José Maria Nóbrega, doutor em Ciência Política e líder do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), diz que a migração é uma característica comum de qualquer tipo de atividade criminosa. “O crime migra. Quando você começa a fazer muitas operações policiais e fechar o espaço num determinado lugar, a tendência é que o crime migre para outro”, explica. “O crime migra e, com ele, o conflito”, acrescenta.
A própria expansão de uma atividade ilícita qualquer, segundo Nóbrega, é um fator de aumento da criminalidade. “Todo mercado ilegal gera conflito, criminalidade, contravenção… Isso gera muitos assassinatos, principalmente quando você tem rivais.” Um agravante, no caso da Amazônia, é a dificuldade de vigilância. “A floresta amazônica é imensa. A probabilidade de você ter atividade criminosa sem que a polícia fiscalize é maior”, afirma o professor.
Segundo Nóbrega, a expansão do processo migratório da criminalidade para o Norte e o Nordeste fica evidente até mesmo por meio dos números da criminalidade em cada região. “Se pegarmos um histórico dos últimos 20 nos da violência no Brasil, vamos ver como as taxas de homicídio na região Sudeste diminuíram, e como aumentaram no Nordeste. Enquanto no Sudeste vinha caindo, no Nordeste vinha crescendo. O gráfico é até interessante: enquanto há um crescimento da série histórica no Nordeste, no Sudeste se dá justamente o inverso. Um dos fatores dessa inflexão é o processo migratório”, observa.
Norte e Nordeste são polos exportadores de maconha
Segundo Sapori, a crescente pulverização do plantio de maconha pelo Norte e Nordeste é mais um sinal de que essa regiões se tornaram polos exportadores de maconha.
“O Norte e o Nordeste têm se transformado, de uns dez, 15 anos para cá, em um polo importante do tráfico internacional, da droga que passa pela fronteira amazônica, escoada pelos portos e aeroportos do norte e do nordeste”, afirma.
À medida que o cultivo da maconha se expande para novos locais, segundo o professor, o peso da economia ilícita na região aumenta, o que tende a fortalecer o poderio das facções criminosas nas duas regiões.
Elas se firmaram como centros importantes para o agronegócio brasileiro. De acordo com o professor, é natural que isso também favoreça a plantação de maconha. “Encontraram as condições propícias de solo, em certos locais onde o clima é favorável, e onde o custo de plantação é baixo, o que favorece imensamente a lucratividade do processo de comercialização”, afirma Sapori.
Nóbrega afirma que a rentabilidade da maconha acaba levando produtores que atuavam legalmente a entrarem no mercado ilícito. “No Polígono da Maconha, muitos agricultores deixaram de produzir suas batatas e cebolas, ou continuaram produzindo só de fachada, e começaram a plantar maconha. Com um quilo de maconha você ganha muito mais dinheiro do que com um quilo de batata”, diz. “Não são todos os agricultores. Às vezes não é a maioria, mas é um percentual que vai ter um impacto grande na produção e na comercialização disso”, salienta.
Expansão sinaliza processo de nacionalização de facção criminosa
Segundo os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, o Norte e o Nordeste do Brasil têm hoje um processo de expansão da atuação dos grandes grupos do crime organizado brasileiro, em especial do Primeiro Comando da Capital (PCC).
“As facções criminosas, tanto o PCC como o Comando Vermelho e as facções locais, se fortaleceram nos últimos dez anos na região. O Norte e o Nordeste do Brasil têm que desenvolver políticas públicas mais consistentes e inteligentes de enfrentamento ao crime organizado. O crime organizado não é mais um ‘privilégio’ da região mais rica do Brasil”, diz Sapori.
Para Nóbrega, o PCC atingiu uma hegemonia no Sudeste que acaba sendo um dos fatores, hoje, para a queda nos índices de violência dessa região, especialmente em São Paulo. Mas, nas regiões Norte e Nordeste, a escalada da violência continua, porque o PCC ainda está em conflito com outras facções pela hegemonia no narcotráfico – em especial em estados como Ceará e Amazonas.
“Há um projeto do PCC de se tornar hegemônico no país. Mas nossos parlamentares parecem não estar preocupados com isso. Nem o Bolsonaro, de quem a gente esperava uma ação mais enérgica, já que ele veio com a agenda da segurança pública mais conservadora, mais enérgica… Ele fez muito pouco”, critica Nóbrega.
Para o professor, não basta mudar a legislação relacionada ao porte e à posse de armas. “Flexibilizar as armas para que o civil tenha acesso a essas armas não vai diminuir a violência. Ao mesmo tempo em que a flexibilização das armas não tem relação com o crescimento da violência, também não tem relação com a sua redução. O que reduz crime e violência é a ocupação do espaço pelo Estado. Agir aplicando a lei. E isso é o que precisa ser feito”, diz.
Nóbrega alerta para o fato de que “o PCC tem um grande projeto”. “É uma grande ameaça à democracia, uma grande ameaça ao nosso regime político. Tem um projeto de poder claro, e está aí atuando. E a gente não sabe se existem pessoas ligadas ao PCC até no Legislativo ou no Judiciário. Não sabemos. E, muito provavelmente, há (pessoas envolvidas). Senão o PCC não teria chegado a ser o que é hoje, com o poder financeiro que tem.”
O professor critica ainda “a ausência de um projeto de segurança pública que leve em conta todas as idiossincrasias do país”. Segundo ele, há poucas condições operacionais e técnicas para desmantelar os plantios de maconha.
“Para que haja uma mudança na realidade, precisamos de instituições coercitivas – polícia, Ministério Público, órgãos do Poder Judiciário, sistema carcerário… – trabalhando em conjunto em um grande plano nacional de segurança pública que tenha como meta acabar com o tráfico de drogas. Não tem esse negócio de arrefecer. Nós temos que destruir isso. Nenhuma nação vai para a frente com o crime organizado e o tráfico de drogas no patamar em que está”, afirma Nóbrega..