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Na periferia de São Paulo, uma dupla de policiais militares acompanha, de motocicleta, um colega que dirige um carro roubado até a delegacia. Era uma ocorrência relativamente tranquila, até que eles percebem uma moto, sem placa e dirigida por um rapaz sem capacete, seguindo na contramão. Começa uma perseguição em alta velocidade. Mas logo os planos mudam de novo quando, em um cruzamento, aparentemente tentando escapar da rota da polícia, o motorista de um carro perde o controle da direção e atinge o muro de uma casa, quase atropelando um pedestre. Os ocupantes do veículo tentam fugir, mas são rapidamente imobilizados pela dupla de policiais. O carro também era roubado. A cena não faz parte de um seriado policial, nem foi flagrada pelo helicóptero de alguma emissora de TV: as imagens foram feitas por um dos próprios policiais, com uma pequena câmera acoplada ao capacete.
Os programas policias continuam tendo espaço na grade da televisão, mas, nos últimos tempos, os policiais aprenderam a produzir e divulgar o próprio conteúdo. Muitos deles mantêm canais do YouTube que exibem, em primeira pessoa, as ações de combate ao crime. As imagens mostram desde ocorrências simples, como uma reclamação de som alto, até megaoperações para prender chefes de quadrilhas.
A Gazeta do Povo encontrou mais de 100 canais de policiais e outros agentes de segurança que mostram a dura rotina de combate ao crime no Brasil. Na lista estão policiais civis e militares, além de guardas civis e policiais rodoviários federais. Combinados, os 20 maiores canais identificados pela reportagem ultrapassam 1 bilhão de visualizações.
A explosão de canais do tipo se deu de 2018 para cá. A grande mudança tecnológica que permitiu a profusão dos canais de policiais foi o surgimento (e, depois, popularização) de câmeras pequenas como a GoPro, que podem ser acopladas ao uniforme ou ao capacete. Em partes dos Estados Unidos e da Europa, as câmeras já foram integradas ao aparato dos policiais. Mas no Brasil, na maior parte dos casos, os próprios policiais adquirem o equipamento.
A maioria dos canais de policiais do YouTube é mantida por integrantes da PM. Mas, atualmente, o campeão de audiência pertence à Polícia Civil de São Paulo: o delegado Carlos Alberto da Cunha, dono do canal Delegado Da Cunha. São mais de 220 milhões de visualizações - quase todas de um ano e meio para cá.
Com vídeos longos, edição profissional e imagens de alta qualidade, Da Cunha também atrai pelo carisma: longe do estereótipo do delegado que grita e distribui grosserias, ele demonstra cordialidade e bom humor.
O maior sucesso de audiência do canal foi uma série de três vídeos mostrando a prisão de um dos chefes do tribunal do crime do PCC. Somados, os episódios têm 25 milhões de visualizações e 53 minutos de duração. O comentário mais curtido no segundo vídeo é o de um internauta que comparou os vídeos de Da Cunha a uma série: "E eu perdendo tempo na Netflix".
O delegado também virou figura frequente em outros canais, especialmente os de podcasts. O sucesso o levou a iniciar um podcast próprio. O aumento da popularidade tornou difícil manter o trabalho de youtuber por conta própria. Além de uma equipe de edição de vídeo, Cunha agora tem uma assessoria de imprensa própria. Mas ele garante isso não modificou sua rotina de delegado.
Nos canais de policiais, os vídeos mais populares geralmente são aqueles que mostram situações de perigo extremo. No canal Madalhano, mantido por um policial militar paulista, um dos vídeos de maior audiência mostra o resgate de um colega de farda que, em horário de folga, entrou por acidente em uma favela e foi atacado por criminosos armados. As imagens são acompanhadas por uma trilha sonora de suspense.
Outra categoria de sucesso é a das perseguições policiais em alta velocidade - quase sempre, com um final feliz. Não por acaso, alguns dos canais mais populares carregam “ROCAM” no nome. A sigla se refere à “Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas”.
Mas as unidades sobre duas rodas também têm outros tipos de ocorrência. Um dos canais mantidos por policiais da ROCAM mostra uma ação rápida que impediu um assalto a uma loja de eletrodomésticos no Capão Redondo (SP). Os criminosos foram presos em flagrante.
Também há espaço para um tipo peculiar de humor: os vídeos que mostram bandidos desastrados ou prepotentes caindo em desgraça. Foi o caso de um suspeito gaúcho que acreditou ser uma boa ideia fugir a pé, por meio de ruas íngremes, de um policial militar que guiava uma moto.
Gravação de imagens por policiais não fere a lei
George Felipe Dantas, doutor pela George Washington University e oficial reformado da Polícia Militar do Distrito Federal, afirma que a profusão dos policiais youtubers é, de forma geral, positiva. Ele diz que a presença de câmeras modifica o comportamento humano para o bem. “Sempre que a gente é observado a gente quer parecer melhor do que a gente é. Assim são policiais e outras profissões também”.
Para o especialista, a transparência é positiva porque permite que a população compreenda melhor o trabalho dos policiais. Ao mesmo tempo, os vídeos também podem ser usados como estudos de caso por pesquisadores do trabalho da polícia. Dantas, entretanto, teme que trechos descontexualizados sejam usados para prejudicar os policiais. “A câmera milita em favor do policial e milita contra o policial. Dependendo do ângulo em que você faz uma filmagem, com descontextualização, as coisas podem ser distorcidas”.
O professor Welliton Maciel, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, afirma que os policiais que filmam suas rotinas de trabalho estão respaldados pela lei. “Filmar a ação policial encontra fundamento legal no exercício do direito fundamental à liberdade de expressão e de fiscalização da atuação do poder público, sendo que, muitas vezes, interessa ao próprio policial ter a prova de sua atuação exemplar e em conformidade com a lei”, afirma.
Mas o professor afirma que divulgação das imagens nas redes sociais precisa ser vista com cautela, já que a identidade dos suspeitos e das vítimas não pode ser exposta. “Se a divulgação de vídeos por policiais é feita de forma a expor, causar dano (real ou potencial) à imagem, à honra e à dignidade, ou intimidar, podendo facilitar a prática de outro crime, deve ser denunciada à Corregedoria da instituição e aos órgãos responsáveis pelo controle externo da atividade policial”, afirma.
Os policiais youtubers têm como regra o uso de imagens distorcidas para não exibir o rosto dos criminosos e das vítimas. Mas, em alguns casos presenciados pela Gazeta do Povo, o vídeo acaba revelando outros dados potencialmente comprometedores, como o endereço das pessoas.
A Polícia Militar de São Paulo, estado que tem o maior número de policiais youtubers, informou à Gazeta do Povo que o único canal chancelado pela corporação é aquele mantido pela equipe de comunicação da PM. A nota diz ainda que “o uso das redes sociais por parte de policiais deve ser feito com prudência, estando os responsáveis pelas publicações sujeitos a punições administrativas e também na esfera penal.” O texto também afirma que a PM não corrobora a criação dos canais independentes no YouTube. “É importante ressaltar que tais páginas são criadas de maneira anônima e sem a anuência da Polícia Militar. Na suspeita de envolvimento de policiais na administração desses perfis, a Corregedoria monitora e investiga caso a caso.”
Já a Polícia Civil paulista informou à reportagem que as publicações dos policiais precisam seguir a Lei Orgânica da Polícia. No ano passado, uma nova portaria proibiu “publicar filmagens ou fotografias de ações policiais, produzidas por Policiais Civis, participantes ou não das ações, salvo quando se tratar de publicação oficial da Polícia Civil de São Paulo ou quando estiver devidamente autorizado”.