Em meio à explosão de casos de agressões contra agentes de segurança pública no estado de São Paulo, policiais militares, mais sujeitos ao enfrentamento direto a criminosos, vivem o dilema de empregarem ou não o legítimo uso da força frente às crescentes situações de risco a si próprios e também a terceiros.
A hesitação em agir em legítima defesa ou no estrito cumprimento do dever está ligada ao receio de retaliações criminais e administrativas, mesmo que a conduta tenha ocorrido dentro da legalidade e dos procedimentos da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP).
Conforme relatos de PMs paulistas à Gazeta do Povo, a crescente insegurança jurídica para policiais usarem a força prevista em lei em situações extremas é potencializada por diversas decisões recentes do STF e do STJ com sinalização de maior tolerância a práticas criminosas e por discursos de autoridades do país com um conceito equivocado de direitos humanos, baseado na criminalização da conduta dos profissionais de segurança pública.
Mas um outro elemento agrava o quadro: a falta de apoio dos comandantes da PM e até mesmo a imposição de retaliações diversas contra agentes que se envolvem em ocorrências com troca de tiros. “Os comandantes querem diminuir a letalidade policial a qualquer custo, porque a imprensa bate muito nessa questão e acaba tendo impacto político. Então quando há uma troca de tiros, por exemplo, os policiais que estão nas ruas acabam sendo alvo de punições por terem ‘criado problemas’ para o comando. Isso gera um clima de acovardamento na tropa”, diz o ex-PM Luiz Paulo Madalhano, que pediu desligamento da corporação no ano passado.
A consequência direta desse cenário, segundo ele, é que os agentes passam a hesitar em agir da forma adequada em situações legítimas, o que ocasionalmente pode levar a ferimentos graves ou mesmo desfechos fatais.
“Além disso, quando os policiais passam a não dar resposta à altura quando criminosos tentam roubar suas armas, por exemplo, isso tem repercussão, passa em todo lugar. Outros criminosos veem isso e são estimulados a ‘tentar a sorte’ também”, diz Madalhano.
Cenário crítico levou comandante-geral a incentivar legítima defesa; policiais veem contrassenso
Os seguidos episódios de resistência violenta contra agentes de segurança, a exemplo do caso ocorrido em junho em que um criminoso baleou dois policiais após reagir a uma abordagem na Zona Leste de São Paulo, levaram o comandante-geral geral da PM-SP, coronel Cássio Araújo de Freitas, a publicar um vídeo nas redes sociais, no início de julho, pedindo à tropa que não hesite em agir durante ocorrências em que haja reação violenta.
“Estamos bastante preocupados com algumas ocorrências onde o policial militar tem hesitado em utilizar suas ferramentas de trabalho. E aí vai meu pedido a vocês: não hesite em cumprir a lei. Faça isso! A sociedade quer que você trabalhe, viva bem e esteja íntegro para cumprir as suas missões. A sociedade, a Polícia Militar e a sua família: pense neles”, declarou.
O comandante chegou a enfatizar que a corporação proporcionaria o apoio necessário a policiais que se envolvessem em ocorrências com disparo de tiros. “Sinta-se seguro para trabalhar. A instituição está à sua disposição”. No entanto, as respostas ao vídeo, nas redes sociais, foram majoritariamente críticas, com alegações de que na prática a história seria bem diferente.
PMs paulistas que atuam nas ruas ouvidos pela Gazeta do Povo também questionaram a declaração do oficial, apontando que inexiste apoio dentro da instituição. “É uma falácia, na prática não funciona assim. O comandante-geral pode falar, mas os demais comandantes de cada unidade não necessariamente vão cumprir, e acaba que quem sofre na ponta da lança é sempre o policial que está nas ruas no dia a dia, e não os oficiais que nunca estão no calor da ocorrência”, afirma em sigilo um PM que integra a Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam).
Comandante-geral criou recentemente mais possibilidades para policiais serem penalizados
Para agravar o cenário, o coronel Freitas tornou mais rígidas as Instruções para o Atendimento de Ocorrências em que haja o Cometimento de Infração Penal – a chamada “I-40-PM”. Até junho deste ano, seria aberto processo regular, que pode levar à dispensa do agente, para apurar a conduta de policiais presos em flagrante cometendo crimes militares ou comuns. Com as mudanças, outras seis hipóteses foram acrescentadas ao texto, ampliando as possibilidades de abertura de processo regular mesmo em casos em que não houve flagrante e não há julgamento do caso.
Em reação, o deputado estadual Major Mecca (PL) apresentou um projeto de lei na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) que prevê a exclusão do artigo que aumentou as possibilidades de penalização a policiais no cumprimento do seu dever.
“A atividade policial militar é notoriamente de risco; os atos dos militares em serviço quase sempre constituem fatos típicos, embora lícitos por estarem abarcados por justificantes legais (privar outrem de liberdade, reagir a injusta agressão a si ou a terceiro, por exemplo), o que torna a prisão em flagrante extremamente comum sempre que haja qualquer dúvida sobre a atuação do agente público”, diz o parlamentar.
“Dessa forma, a violação do princípio da não-culpabilidade também é uma afronta à razoabilidade: grande parte dos policiais militares sujeitos a processos criminais por atos cometidos em serviço é absolvida. Assim, criar novas hipóteses de abertura de Processo Regular contra policiais militares por apenas existir situação potencialmente incriminadora é também imprudência”, continua.
Outro fator relatado pelas fontes é que com frequência policiais envolvidos em ocorrências com troca de tiros são punidos de forma velada, com afastamento de suas atividades, proibição à realização de horas extras dentro da corporação e transferência de local de trabalho. Algumas dessas medidas mexem diretamente no bolso dos profissionais.
“Esse é um dos motivos para o policial acabar evitando agir nas ocorrências. Um colega recentemente foi transferido para uma unidade a quase 100 km de casa após ter se envolvido em uma ocorrência com resultado de morte, mesmo o caso tendo sido arquivado devido à existência de legítima defesa”, afirma um dos policiais.
Uso da força, inclusive letal, está previsto em lei; excessos geram responsabilizações
Via de regra, o emprego de força letal pelo policial militar não será considerado crime nas seguintes situações: em estado de necessidade; em legítima defesa; em estrito cumprimento do dever legal; e em exercício regular de direito.
“O uso da força letal é legítimo desde que sejam observados esses requisitos. O importante é que se ele agiu dentro da legalidade não pode ser responsabilizado nem administrativamente nem criminalmente, até porque estava a serviço da segurança pública, da sociedade”, explica a professora de Direito Penal e especialista em Direito Militar Luciana Vidal.
Havendo suspeita de excesso, explica ela, o policial poderá responder tanto em procedimento administrativo quanto criminal para que seja verificado se houve, de fato, o excesso. “Se confirmado, obviamente ele será responsabilizado”, diz Luciana.
Hesitação de policiais em agir e as consequências à segurança pública
Em 2020, na gestão de João Doria (PSDB), as câmeras operacionais portáteis, conhecidas como câmeras corporais, começaram a ser utilizadas pela PM paulista. O objetivo do governo estadual ao instalá-las nos uniformes foi reduzir as mortes ocorridas em decorrência de ação policial.
De lá para cá, esse número caiu 62,7% segundo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgado em maio. Em 2019, último ano sem as câmeras, foram registradas 697 mortes cometidas por policiais em serviço, enquanto em 2022 esse número foi de 260.
Apesar da queda na letalidade policial, na comparação entre 2019 e 2022 crimes como homicídio e furto registraram alta, enquanto indicadores de produtividade policial apresentaram queda. Como exemplo, o número de prisões efetuadas diminuiu mais de 20%, enquanto a taxa de veículos recuperados, após terem sido furtados ou roubados, teve redução de 26%.
Um dos motivos para isso, segundo um dos policiais ouvidos sob sigilo, é que as câmeras geram nos agentes receio de serem criminalizados por usarem a força quando necessário. O resultado é que as equipes passaram a evitar a incursão em locais em que há eminência de confrontos, como algumas comunidades que são destino da maior parte dos carros roubados no estado.
“Os próprios policiais não estão indo patrulhar em favelas, por exemplo, justamente com medo de haver confronto, ou de haver uma ocorrência em que ele precise agir e acabe sendo punido. Então teve menos mortes? Sim, porque os policiais passaram a fazer só o patrulhamento nas grandes avenidas. E quem sofre com isso é a população”, declara.
Outro lado
A Gazeta do Povo entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, informou sobre os relatos de policiais paulistas veiculados nesta matéria e solicitou posicionamento por nota ou entrevista com algum porta-voz da PM-SP. Segue abaixo, na íntegra, a nota encaminhada:
"Os policiais militares recebem apoio da instituição e passam pelo Programa de Acompanhamento e Apoio ao Policial Militar, quando há registro de morte. As instruções referentes ao atendimento de ocorrências envolvendo infrações penais praticadas por policiais militares (I-40-PM) continuam as mesmas após a atualização. A única diferença está relacionada à autoridade competente para instaurar o processo. O objetivo principal da recente mudança é coibir desvios de conduta, sem interferir nas atividades diárias dos policiais. É importante ressaltar que não há tratamento diferenciado entre praças e oficiais. As instruções são as mesmas para todos os PMs".
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