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Nesta quarta-feira, 18 de maio, celebrou-se o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. O objetivo para a instituição da data, ainda no ano 2000, foi o de estimular o debate sobre o tema e a criação de políticas públicas para fazer frente aos números dramáticos de abuso sexual de menores no Brasil.
Das mais de 100 mil denúncias de violações de Direitos Humanos contra crianças e adolescentes registradas em 2021 pelos canais do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), quase 18,6% estão relacionadas a violências sexuais. Porém, a subnotificação desses casos traz contornos mais preocupantes ao problema: segundo pesquisa TIC Kids Online Brasil, com dados de 2018, estima-se que menos de 10% dos casos de abuso sexual contra crianças são denunciados às autoridades, o que pode elevar consideravelmente o número de vítimas desse crime.
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Dados atualizados do MMFDH mostram que os cenários dos abusos que aparecem com maior frequência nos relatos são a residência da vítima e do suspeito (8.494 denúncias), a casa da vítima (3.330) e a casa do suspeito (3.098). O padrasto e a madrasta (2.617), e o pai (2.443) e a mãe (2.044) estão entre os maiores suspeitos nos casos, seguidos de tios e vizinhos. Em quase 60% dos registros, a vítima tinha entre 10 e 17 anos. Em cerca de 74%, a violação é contra meninas.
Para fazer frente a crimes sexuais contra crianças e adolescentes, a subtenente da Polícia Militar do Paraná (PMPR) Tânia Guerreiro decidiu especializar-se no combate à pedofilia, e há mais de 30 anos atua nesse tema. Atualmente vereadora em Curitiba-PR, ela já fez centenas de palestras sobre o assunto, representou o Brasil em reuniões da Interpol em Budapeste (Hungria) e Ottawa (Canadá), capacitou policiais em outros estados e produziu quatro manuais em parceria com o governo do estado, direcionado a policiais, pais, crianças e professores.
Pedagoga com especialização em Enfrentamento à Violência Contra a Criança e o Adolescente, a policial lançará ainda neste mês um livro com a proposta de ser um manual de combate ao abuso sexual infantil. Desde o ano 2000, Tânia coleta assinaturas para aumentar a pena prevista no Código Penal para abusadores condenados pela Justiça.
Nesta entrevista exclusiva, a Gazeta do Povo conversou com Tânia Guerreiro sobre o cenário da pedofilia no Brasil e os desafios que o país tem pela frente.
De que forma o período de isolamento social impactou o cenário de abuso sexual contra crianças?
Tânia Guerreiro: A pandemia nos trouxe muitos casos de pedofilia, não por conta de ter aumentado o número de pedófilos, mas por terem aumentado as denúncias. Assim como o pedófilo estava mais tempo em casa e a criança também, por não estar indo à escola, estavam também outros familiares e vizinhos, que passaram a trazer as notícias de abusos. Então as denúncias aumentaram significativamente, e não o número de abusos, que sempre existiu entre quatro paredes.
Pior do que a Covid-19 é a pedofilia. Porque quanto à Covid, agora tivemos uma redução significativa de contaminações, e a pandemia está terminando por conta das vacinas, mas para a pedofilia não existe vacina; é uma pandemia mil vezes pior do que qualquer tipo de vírus que possa até mesmo levar à morte, porque a pedofilia deixa a vítima um morto sem túmulo. Ela continua viva, mas está com a alma morta. As consequências, em grande parte dos casos, são para toda a vida.
Quais são os principais sinais para identificar abusos?
Tânia Guerreiro: A primeira coisa é a mudança de comportamento da criança. De todos os sinais, o que vem primeiro é isso. A criança altera significativamente a maneira de agir diante dos outros. Em casa, ela fica mais agressiva, mais chorona, pode urinar na cama, pode se cortar ou se mutilar.
Na presença do agressor, ela "se apaga". A criança pode também começar a maltratar outros familiares que tenham idade parecida, como irmãos e primos, e fazer o mesmo a animaizinhos de estimação. Pode, também, tocar em outras crianças de maneira inconveniente. No caso de adolescentes, o rendimento escolar cai. E é importante não jogar tudo isso para a questão da rebeldia por conta da idade.
Veja, é um conjunto de várias coisas, não é uma coisa dessas isolada que vai determinar que há um abuso. A regra é: deixou de ser uma criança "normal", se preocupe. Vale dizer que na maioria das vezes a criança não fala sobre esses casos.
Há idades em que há maior ocorrência de abuso?
Tânia Guerreiro: Isso acontece em todas as idades. Há casos de pedófilos que buscam até mesmo bebês. Esses casos vão desde mãe, pai, irmãos, avós, tios e pessoas de fora que têm contato com a família, e alcançam todas as idades. Tem pedófilos que criam relacionamento com crianças novas e passam por anos dominando essas crianças, tirando qualquer capacidade de reação das vítimas.
Já atendi vítimas de agressões desse tipo que mesmo depois de adultas e de se tornarem até mesmo fisicamente mais fortes do que o agressor, se mantêm incapazes de se desvencilhar daquele agressor.
O que fazer diante da constatação de um caso confirmado ou de uma suspeita de abuso sexual?
Tânia Guerreiro: Ir à delegacia e fazer boletim de ocorrência. Na delegacia, será emitida uma guia que vai determinar que a criança deve fazer o exame de conjunção carnal. Nesse exame pode ser que não dê em nada, porque é raro o pedófilo doméstico ou com ligação doméstica, que soma a grande maioria dos casos, fazer a penetração – isso é a última coisa que vai fazer depois de muito tempo de abuso.
Mas apesar disso, vai continuar havendo essa investigação, agora com a profissional de saúde mental. Mesmo que a criança não verbalize o que está acontecendo, pela dinâmica que a psicóloga vai usar, ela vai entender as atitudes da possível vítima, e o laudo dessa profissional é peça para acusação do pedófilo.
Outra coisa que pode ser feita é ligar para o conselho tutelar da área anonimamente e falar das suspeitas. A pessoa também pode ligar para o Disque-denúncia da polícia, que é o número 181, de forma anônima, e contar o que desconfia. Há, ainda, o Disque 100, dos Direitos Humanos do governo federal, que pode ser contatado. Mas em todos esses casos a pessoa tem que municiar esses canais com todas as informações possíveis, como endereço, possível idade das crianças, quantos adultos tem na casa, entre outros. Essas informações vão permitir determinar uma investigação baseado no que for denunciado.
Quais os principais problemas que o Brasil precisa corrigir para frear essas ocorrências?
Tânia Guerreiro: Duas coisas são muito importantes: mudanças na legislação e prevenção.
Sobre a legislação, o art. 217-a do Código Penal [que prevê pena de 8 a 15 anos para crime de estupro de vulnerável] melhorou, sim, mas não é o que queríamos para a proteção da criança. O abusador tem que ficar 30 anos preso. Como 90% dos casos acontecem dentro de casa, ele hoje pega uma pena de 8 a 15 anos, cumpre no máximo dois ou três, sai por bom comportamento e, nos casos em que há ligação doméstica, 48 horas é o prazo médio para ele tocar de novo naquela vítima.
Nossa luta é para que a pedofilia seja tipificada no Código Penal com pena de 30 anos sem possibilidade de indulto, sem saidinha – 30 anos fechado. Estamos colhendo assinaturas desde o ano 2000 para isso. Nossa meta é 1,2 milhão de assinaturas; temos atualmente por volta de 150 mil.
Já quanto à prevenção, é importante pensar na capacitação de diversos tipos de profissionais sobre o combate à pedofilia. Isso vai desde os profissionais de segurança, que são os que vão abordar e chegar primeiro na ocorrência, aos profissionais da área de saúde, psicólogos e outros. Todo psicólogo, por exemplo, precisa sair da faculdade preparado para esse tipo de situação, senão ele vai aprender como eu, ao longo de 30 anos, e quantas vítimas ele deixou passar sem acudir?
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O professor precisa ser capacitado para reconhecer essa vítima de pedofilia e encaminhá-la para os órgãos competentes. Juízes e promotores precisam estar capacitados, assim como enfermeiros, que têm que ter uma disciplina específica sobre isso para que saibam como abordar para não agredir mais.
Em outras palavras, precisamos de profissionais capacitados já na base. É preciso mudar esse cenário de formação. Eu sou a única policial militar do Brasil especializada na área de pedofilia. Em nenhuma cidade do país temos uma secretaria municipal contra a pedofilia, nenhuma secretaria estadual de combate a pedofilia. Não temos nada que se dedique exclusivamente para combater esses crimes.
Estamos deixando nossas crianças à mercê da sorte. Estamos deixando os abusadores se capacitarem e fazerem o que querem do futuro dessas crianças, que serão muito impactadas e possivelmente irão para as drogas, para a prostituição, ou para o suicídio e o homicídio. Além disso, de 25 a 30% das crianças abusadas acabam se tornando abusadores no futuro.
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