Nos últimos dias, três dos mais tradicionais jornais norte-americanos – The New York Times, The Washington Post e The Wall Street Journal – e o jornal generalista mais lido da Espanha, El País, publicaram artigos que abordam os riscos das decisões monocráticas recentes do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), para a democracia brasileira.
A repercussão internacional em meios tradicionais contrasta com a baixa visibilidade dada ao mesmo tipo de questionamento em veículos de grande alcance do Brasil. São exceções, além disso, os casos de formadores de opinião de fora da direita em território nacional que levam a público a preocupação com os ataques à liberdade de expressão. Os que o fazem têm sido atacados por isso.
Na semana passada, o jornalista norte-americano Glenn Greenwald se tornou alvo da esquerda ao externar sua inquietação com as decisões de Moraes. Conhecido por ter publicado conversas hackeadas entre ex-membros da Lava Jato no site The Intercept, Greenwald era tido como herói entre esquerdistas por ter dado o ponto de partida para o desmonte da operação que havia resultado na prisão do presidente Lula (PT). Diante da enxurrada de críticas ao seu posicionamento sobre Moraes, o jornalista evocou a importância de não relativizar “princípios” em nome de ideologias.
“Quem defende um princípio não está do lado de nenhuma facção política. Um princípio não serve à esquerda ou à direita. Um princípio, por definição, tem aplicação universal. Aqueles que não conseguem raciocinar com princípios sempre assumem que todos sofrem da mesma incapacidade”, disse via Twitter.
Para o especialista em liberdade de expressão Pedro Franco, mestre em história social da cultura pela PUC-Rio e em estudos interdisciplinares pela Universidade de Nova York, o comportamento omisso da esquerda em relação às decisões recentes do STF e crítico em relação a Greenwald “tem muito a ver com raciocínio motivado”. “Se os alvos principais dos processos censoriais fossem da esquerda, talvez seria a esquerda a defensora da liberdade de expressão. Sempre quem é o alvo do ataque se torna um defensor da liberdade de expressão. Isso é uma tendência humana, e é raro – embora não deveria ser tão raro assim – ver membros do campo político oposto defendendo o direito dos seus oponentes à liberdade de expressão, como foi o caso do Glenn Greenwald.”
Esquerda condena “visão americana” da liberdade de expressão
Muitos dos que criticaram Greenwald após seus posicionamentos sobre Moraes acusaram-no de querer introduzir no Brasil uma ideia de liberdade de expressão tipicamente americana, em que se vê a manifestação de pensamento irrestrita como um ideal. Para Franco, esse argumento está sendo usado “para dispensar as críticas do Glenn e não se pensar muito sobre a substância do que ele está falando”.
“Os Estados Unidos, de fato, têm uma jurisprudência sui generis em relação à liberdade de expressão. Acho que é o país que mais preza por esse direito. Faz sentido que o Glenn ou que o americano médio tenha o ímpeto e tenha na ponta da língua os argumentos para defender esse direito, e coloque a cara a tapa para defendê-lo com mais frequência do que o brasileiro. Mas o direito de liberdade expressão não é totalmente estranho ao sistema jurídico brasileiro, não é estranho a qualquer democracia moderna liberal e não é um princípio alienígena para nossa jurisprudência”, afirma.
Já Bruna Frascolla, doutora em Filosofia pela UFBa e colunista da Gazeta do Povo, acredita que o modelo de liberdade de expressão norte-americano não só não contradiz a lógica de Moraes, como é justamente a origem intelectual do que ele tem feito.
Para ela, o Brasil, nos últimos anos, saiu “de um modelo de de censura que era objetivo, porque caracterizava certas teses como moralmente condenáveis” para o “parâmetro utilitarista dos Estados Unidos, segundo o qual a liberdade de expressão deve ser irrestrita, exceto em caso de dano”.
Nos EUA, segundo ela, as decisões sobre liberdade de expressão acabam sempre caindo no critério subjetivista, em que é o juiz que termina por decidir o que causa ou não dano para sociedade.
“Isso vem da interpretação do juiz (Oliver) Wendell Holmes Jr. (1841-1935) sobre a Primeira Emenda (que trata da liberdade de expressão). Essa interpretação, inclusive, foi feita para defender a censura na época da guerra. O argumento dele era utilitarista: ele usava como exemplo a ideia de que você não pode gritar ‘fogo’ em um teatro cheio, porque isso é perigoso. A partir daí, qualquer um pode considerar qualquer coisa perigosa e clamar por censura em sentido contrário”, diz.
Para Bruna, a solução para esse subjetivismo seria estabelecer “um consenso por meio de leis objetivas do que deve ser censurado e do que não deve”. “Quando você diz que ‘é crime fazer coisas que sejam perigosas’, vai da cabeça do juiz dizer o que é perigoso e o que não é”, observa. “‘O discurso de ódio não pode’. Por quê? ‘Porque é perigoso’. E como é que eu vou determinar se é perigoso ou não? Aí é da cabeça do juiz. É tudo muito subjetivo. Você acaba fazendo, nem que seja informalmente, uma lista de coisas proibidas porque são perigosas. Só que isso não foi codificado. Está na cabeça do juiz, que faz o que quiser”, acrescenta.
Moraes ignora o risco do “efeito Streisand”, diz especialista
Para Franco, Moraes pode acabar provocando no Brasil o que se costuma chamar de “efeito Streisand”, isto é, a ideia de que a censura desperta o interesse das pessoas sobre o conteúdo censurado.
Ele cita como exemplo a Alemanha nazista, onde, segundo alguns historiadores, as leis para coibir o discurso de ódio não impediram Hitler de chegar ao poder. “Havia leis proibindo o discurso antissemita na Alemanha antes dos nazistas chegarem ao poder. Havia altas doses de censura, inclusive contra os nazistas. Isso impediu os nazistas? Não. Pelo contrário, foi usado justamente como uma arma pelos nazistas para se fazerem de vítimas. Isso gera a simpatia das pessoas por gente que muitas vezes não merece simpatia – como os nazistas, por exemplo.”
Franco compara a atitude de Moraes e de parte da esquerda a “querer combater o aquecimento global quebrando todos os termômetros”. “É um paliativo absolutamente superficial e ineficiente, que vai levar a obscurecer a natureza do problema mais do que a combatê-la”, afirma. “Acho que é uma ingenuidade monstruosa do Alexandre de Moraes achar que esse método de combate vai funcionar. É uma ingenuidade monstruosa de todos os que acham que isso vai fortalecer as nossas instituições, porque as nossas instituições funcionam na base da confiança. E isso não gera confiança”, complementa.
Para Bruna Frascolla, estabelecer leis claras sobre o que se pode ou não dizer publicamente é a melhor solução para evitar tanto as arbitrariedades de juízes como a usurpação da liberdade de expressão por agentes poderosos. Em sociedades que dispensam leis objetivas sobre os limites da expressão, a democracia fica sempre sujeita a esses dois riscos, diz.
Nesse sentido, ela propõe uma reflexão sobre um limite importante da livre expressão segundo o modelo norte-americano: “Imagine que algum bilionário maluco e extravagante resolve defender o canibalismo. Como ele tem muito dinheiro, ele patrocina programas de televisão e faz toda uma revolução cultural só com o dinheiro dele, defendendo o canibalismo. E ele vai fazer isso, porque tem dinheiro. A sociedade vai ficar revoltada, vai tentar censurar, mas não vai ter meios para isso, porque isso é a liberdade de expressão do tal bilionário.”
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