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Guinada à direita na opinião pública ainda não foi assimilada pela esquerda.
Guinada à direita na opinião pública ainda não foi assimilada pela esquerda.| Foto: EFE/ Joédson Alves

Em 3 de outubro, um dia após o primeiro turno das eleições de 2022, uma agência de notícias com viés de esquerda publicou um vídeo no YouTube intitulado “Brasil subestimou a força da extrema-direita?”, sobre o resultado do pleito que tornou a direita dominante no Senado e na Câmara. O título é emblemático de como parte da elite intelectual de esquerda ainda tende a enxergar o despertar da direita no país: um fenômeno alheio ao Brasil real, composto por extremistas e radicais.

comprovação científica de que a direita tende a ser melhor em compreender a esquerda do que o contrário. A própria esquerda brasileira reconhece, em alguma medida, que seus representantes intelectuais estão se distanciando da parcela do povo que deu passos à direita: nos últimos anos, especialmente depois das eleições de 2018, são frequentes os artigos jornalísticos e os trabalhos acadêmicos que insistem na necessidade de “dialogar” com a nova direita, para compreender melhor a sua ascensão.

Camila Rocha, doutora em Ciência Política pela USP, autoidentifica-se como de esquerda, e escreveu sua tese de doutorado – transformada no livro Menos Marx, Mais Mises: o Liberalismo e a Nova Direita no Brasil – com base sobretudo em conversas com representantes da direita. No livro, ela afirma que existe entre os esquerdistas uma “percepção de que a militância de direita é inautêntica, manipulada por elites políticas mais importantes e experientes, ou formada por pessoas histéricas e paranoicas”.

À Gazeta do Povo, Camila explica que a dificuldade da esquerda de entender a direita pode se dar, em certa medida, pela criação de uma bolha ideológica. “É comum que as pessoas procurem se relacionar de forma mais intensa, mais frequente, com pessoas que pensam mais ou menos parecido. É uma dinâmica de grupo. Isso reforça o sentimento de pertencimento, de identidade. Mas qual é o problema disso? Quando você reforça esse sentimento de identidade, você pode eventualmente se dessensibilizar para o outro, para quem pensa diferente. O sentimento de pertencimento a uma coletividade também é muito construído por meio do antagonismo – ‘eu sou aquilo que o outro não é, ou eu penso aquilo que o outro não pensa, o oposto do que o outro pensa’. Isso pode criar uma barreira para a empatia quando você se coloca diante de alguém que pensa o oposto”, observa.

Guinada à direita na opinião pública ainda não foi assimilada pela esquerda

Para Eduardo Matos de Alencar, doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a dificuldade da esquerda brasileira de entender a direita se deve, em parte, ao fato de que a elite intelectual esquerdista ficou durante décadas fechada dentro de seu próprio mundo, sem se dar conta de que seu monopólio sobre a opinião pública estava sendo rompido.

“O que se gerou foi uma espécie de alienação em que o establishment da mídia, da academia, dos intelectuais estava vivendo em uma segunda realidade, que não correspondia, de fato, aos interesses que estavam borbulhando na sociedade, que era facilmente mensurável pelas redes sociais. A esquerda ficou ensimesmada, em um mundo fechado, e esse mundo fechado se blindou contra as críticas e contra a possibilidade de diálogo. Mas a realidade sempre fala mais alto”, diz.

O teólogo e cientista da religião Guilherme de Carvalho, colunista da Gazeta do Povo, diz que “a esquerda nacional estava acostumada com uma direita mais domesticada, que vinha se adaptando há muito tempo à hegemonia de esquerda na produção cultural, na universidade e no próprio jornalismo”.

“O que a gente tinha até pouco tempo atrás era uma esquerda mais radical fazendo oposição a uma esquerda mais moderada, que fazia as vezes da direita, pelo menos no plano do pensamento e da ação ideológica”, explica.“Agora a esquerda precisa lidar com uma direita efetiva, de verdade, e ela não está acostumada a lidar com isso. Ela estava acostumada a lidar com o centro e a centro-esquerda. Isso era a ‘direita’ da nossa intelectualidade. Eu acho que existe um choque, e vai demorar um tempo para o pessoal se acomodar a este fato de que agora há uma direita explícita e principiológica. Se ela está fazendo bem esse trabalho é outra história, mas agora ela existe efetivamente.”

Esquerda limitou a diversidade intelectual e deixou de compreender a tradição e o conservadorismo

É um fato conhecido o fascínio de grande parte do meio acadêmico e intelectual de esquerda brasileiro por teorias modernizantes da filosofia, da ética, da antropologia e da pedagogia, que tendem a prevalecer, muitas vezes, em detrimento de autores e obras clássicas. Uma consequência comum disso é a falta de contato de grande parte da esquerda com o arcabouço cultural e a tradição filosófica que fundamentam a nossa civilização.

Para o professor e escritor Francisco Escorsim, colunista da Gazeta do Povo, a esquerda limitou as visões de mundo permitidas no universo acadêmico e intelectual, e a sua incapacidade atual de compreender a direita provém em grande medida disso. “Eu acho que é muito fruto dessa falta de diversidade, pluralidade real dentro das universidades, principalmente aquelas dedicadas à área de humanas, da política, da sociedade, e também da grande imprensa”, afirma.

Eduardo Matos de Alencar diz que os esquerdistas “não conhecem as bases daquilo contra o que estão se insurgindo” e tratam os adversários “como se fossem idiotas”. “Todo cristão é um imbecil, um coitado, um sentimental, um ignorante. Por isso todo aquele esforço do tipo: ‘Como é que a gente vai conversar com os evangélicos? Como a gente vai conversar com os católicos?’ É como se fossem superiores o suficiente para abranger o outro. Quando a gente sabe que, por exemplo, qualquer professor universitário brasileiro médio – para não dizer um jornalista – choraria lágrimas de sangue se tivesse que tentar interpretar algum artigo da Suma Teológica de São Tomás de Aquino, para citar um exemplo. E que se dirá de qualquer outro grande autor cristão do século XIX ou do século XX, até mesmo alguns mais palatáveis, como Chesterton, Maritain…”, observa.

Nos últimos anos, aliás, uma das grandes preocupações da elite intelectual esquerdista sobre a ascensão da nova direita tem sido o papel do mundo cristão – especialmente o dos evangélicos – nesse fenômeno. Não são poucos os esforços para trazer o público evangélico para perto da esquerda.

Para Alencar, as críticas dos esquerdistas a cristãos de direita “só atingem a espuma”. “Eles arrumam lá uns poucos evangélicos minoritários que dizem: ‘sou evangélico e sou do PSOL’, ‘sou evangélico e sou esquerdista’, ou qualquer coisa assim, e aquilo só tem repercussão lá dentro do âmbito deles. Não é assim que a coisa funciona. Quem está no campo da direita e olha aquilo percebe que aquilo é uma caricatura”, critica.

Recentemente, uma analista política de um site com viés de esquerda ressaltou a urgência de lançar um novo olhar “sobre as práticas, comportamentos e demandas dos diferentes grupos e correntes evangélicas”. “É importante conhecer para dialogar, é importante compreender medos e anseios mútuos e dissidentes para que possamos construir pontes. É importante escutar para se comunicar. Enquanto esse Brasil for ‘outro Brasil’, não compreenderemos as urnas”, afirmou.

Para Carvalho, uma das concepções equivocadas em meio a este empenho da esquerda em entender “o outro Brasil” é a crença na possibilidade de compaginar alguns valores cristãos com pautas como o identitarismo.

“O contorcionismo que a esquerda, com a assessoria de uma ala mais radical, quer fazer é impossível. Teria que mudar a imaginação religiosa evangélica, para começar por aí. Não é impossível você ter evangélicos mais à esquerda do ponto de vista, por exemplo, de questões macroeconômicas, do tamanho do Estado, até na concepção de justiça social. Essas coisas, no ambiente evangelical, existem. A questão é essa mutação mais recente da esquerda brasileira, que fundiu alguns temas revolucionários clássicos com o identitarismo. Essa combinação é muito incompatível com o espírito da religião evangélica e com a leitura bíblica típica que você vai encontrar nas igrejas”, comenta Carvalho.

Para o teólogo, outra grande dificuldade de esquerdistas é compreender que há uma vida intelectual pujante nos ambientes cristãos. “Existe uma ignorância brutal no ambiente da esquerda hoje sobre a vida intelectual evangélica. O evangélico típico vai para a universidade e é exposto aos argumentos da esquerda. Ele é obrigado a achar meios de reconstruir suas ideias, construir uma oposição. As tentativas de manter evangélicos dentro do aprisco do criacionismo científico, da Terra plana e tal… isso é terrível. A produção intelectual de cristãos, tanto evangélicos quanto católicos, sobre esses temas é gigantesca e muito consistente intelectualmente. O que acontece é que a esquerda não está acostumada a usar, por exemplo, a linguagem teológica, porque assume que isso não importa, tem uma visão secularista sobre as coisas. Mas há um setor inteiro da população que tem aprendido a raciocinar em termos teológicos e a combinar argumentos teológicos com discussões éticas, políticas e de ciência”, comenta.

A vida intelectual dos cristãos é “absolutamente misteriosa para a esquerda”, diz Carvalho, o que explica o esforço de parte da esquerda “tentando cooptar teólogos mais liberais e modernizantes no sentido teológico, para tentar construir uma ponte”. “Só que o movimento evangélico, atualmente, no Brasil, é muito vacinado contra essas atualizações forçadas da teologia. É difícil isso decolar.”

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