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O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), adicionou mais um item à longa lista de funções atribuídas por ele próprio a si mesmo. Moraes se encarregou de regular as políticas públicas sobre moradores de rua em todo o país, com o apoio do plenário da Corte.
Em uma decisão proferida no dia 25 de julho, ele proibiu que estados e municípios removam os moradores de rua (ou os pertences deles). Sem exceções. Medida confirmada pelos seus pares no último 20 de agosto.
Moraes ordenou que estados e municípios “proíbam o recolhimento forçado de bens e pertences, assim como a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua.” O ministro também obrigou estados e municípios a seguirem as diretrizes da Política Nacional para a População em Situação de Rua, que foi criada, via decreto, pelo governo Lula em 2009. O ministro deu 120 dias para que o governo federal elabore um plano para monitorar a aplicação da política.
A ação foi movida pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e dois partidos políticos: a Rede Sustentabilidade e o PSOL. O argumento é o de que a autonomia dos moradores de rua deve ser respeitada. O problema, ignorado pelos autores da ação, é que a autonomia dessas pessoas muitas vezes está seriamente afetada pela dependência química e problemas de saúde mental.
Pior: a determinação de Moraes parece se basear na premissa de que é possível resolver um problema complexo com uma medida imposta de cima para baixo.
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Causas vão além do desemprego e falta de moradia
Um estudo recém-publicado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostrou um aumento no número de moradores de rua no Brasil. De acordo com o levantamento, o número de pessoas nessa situação passou de 90 mil em 2012 para 281 mil em 2022. No período, todos os anos registraram crescimento. Ou seja: o problema vinha piorando antes da pandemia, ao contrário do que o argumento dos autores da ação no STF (aceito por Moraes) dá a entender.
E, embora a pobreza seja um fator importante, a variável econômica não parece ser a principal explicação para esse aumento.
Problemas familiares (46,3%) e a dependência de álcool ou drogas (33,3%) são os principais fatores que levam alguém a morar na rua, segundo o Censo da População em Situação de Rua da cidade de São Paulo de 2019. A pesquisa também mostrou que 31,9% dos moradores de rua da capital paulista já estiveram em clínicas de recuperação de dependentes químicos, e 12,8% já estiveram em instituições psiquiátricas. Além disso, 68,2% deles afirmaram consumir bebidas alcoólicas; 40,1% fazem uso de maconha; 35,6% de cocaína e 23,9% de crack.
Isso significa que, se for preciso esperar que essas pessoas voluntariamente busquem auxílio e decidam por si mesmas deixar a rua, em muitos casos a espera será em vão.
A decisão de Moraes também suscita dúvidas quanto aos direitos das pessoas afetadas pela concentração de moradores de rua, cuja presença por vezes está associada a um aumento no número de certos crimes, como o furto.
Sucesso exige persistência
O assistente social Kevin Dahlgreen ficou surpreso ao ser informado pela Gazeta do Povo sobre a decisão de Moraes. “Vocês verão grandes picos de overdoses e mortes após esta decisão, porque ela apenas mantém essas pessoas na rua”, diz ele.
Dahlgreen sabe do que está falando. Há uma década e meia, ele ajudou a criar um programa bem-sucedido em Gresham, cidade de 115 mil habitante nos arredores de Portland, no estado americano do Oregon.
Sua abordagem se baseava em uma ideia simples: o contato diário com os moradores de rua. Aos poucos, ele ganhou a confiança dos que tinham a intenção de deixar essa situação (a maioria deles) e conseguiu compreender melhor o que cada um precisava para sair da rua. Dali, eles eram encaminhados para os tratamentos adequados. Dentre os que preferiam ficar na rua (os mais problemáticos, segundo Dahlgreen), a maioria acabou deixando a cidade. A redução no número de moradores de rua foi de 80%.
Dahlgreen é um crítico de iniciativas que não têm como objetivo principal retirar essas pessoas das ruas. Ele afirma que, quando se criam programas que facilitam a vida do morador de rua, sem buscar retirá-los de lá, surge um ciclo difícil de quebrar. Além disso, é possível que mais pessoas passem a vir de outros locais para ter acesso aos benefícios. Ou seja: o efeito pode ser um aumento da população de rua em vez de uma diminuição.
Para muitos especialistas, é isso que tem acontecido em algumas regiões dos Estados Unidos, como a Califórnia — onde a tolerância com o uso de drogas e políticas de esquerda têm sido apontadas como responsáveis pelo aumento no número de moradores de rua.
Dahlgreen ressalta que é preciso levar em conta os direitos da comunidade como um todo, e não apenas os dos moradores de rua. “Quais são os direitos do resto da comunidade? Deve haver um equilíbrio que visa manter as comunidades habitáveis”, diz. Ele afirma também que o programa bem-sucedido em Gresham não é caro e pode ser replicado no Brasil. “Não é uma questão de dinheiro, é uma questão de esforço e abordagem”, diz.
Trabalho em primeiro lugar
Outros exemplos bem-sucedidos nos Estados Unidos incluem o modelo “Work First” (Trabalho Primeiro) que prioriza a devolução da autossuficiência a pessoas que, muitas vezes, não enxergam como podem ser úteis à sociedade.
Um dos casos mais conhecidos é o do Doe Fund, organização criada em Nova York em 1985. O programa assegura emprego a moradores de rua, desde que eles assinem um compromisso de deixar de usar drogas. Em troca, eles obtêm uma vaga em um dormitório e 30 horas de trabalho (pago) por semana. Ao mesmo tempo, recebem treinamento sobre carreira e educação financeira. O programa completo termina em cerca de um ano, quando a maior parte dos participantes já consegue levar uma vida independente.
Exemplo brasileiro
Para André Santoro, gerente do Serviço Especializado em Abordagem Social da Secretaria de Desenvolvimento Social do Distrito Federal, é preciso pensar políticas diferentes para pessoas com perfis diferentes. “Não há uma melhor forma, mas melhores formas”, diz ele, que explica: “Quando a gente pensa em população de rua, a gente tende a colocar todo mundo na mesma categoria. Mas a rua é multifatorial. São diferentes razões para as pessoas ficarem em situação de rua. É preciso ter diferentes políticas para os diferentes grupos que vivem em situação de rua.”
Uma das abordagens que o Distrito Federal e outras unidades da federação têm começado a adotar é chamada de Moradia Primeiro. A ideia é que, em vez de levar a pessoa para um tratamento de drogas e conseguir um emprego antes de assegurar a moradia, a moradia seja o primeiro passo.
O modelo surgiu no estado americano de Utah, com bons resultados: entre 2005 e 2015, o número de pessoas sem-teto caiu cerca de 90%. Em outros locais, nem sempre o desempenho foi o mesmo. Uma das controvérsias dessa abordagem é uma certa tolerância com o consumo de drogas, já que o beneficiado pelo programa não precisa demonstrar estar livre do vício antes de obter a moradia.
No Brasil, o Projeto Cristolândia, mantido pela Convenção Batista Brasileira, também tem obtido bons resultados com uma abordagem bem-estruturada, com foco nos usuários de crack. O programa é dividido em três fases. O primeiro é o atendimento imediato, com oferta de banho, alimento e material de higiene. Depois, caso o participante concorde, ele é encaminhado a um centro de formação que concilia o tratamento da dependência química com uma formação religiosa e orientações mais práticas sobre profissões e a reinserção na sociedade. Por fim, o acompanhamento prossegue até que o participante seja considerado apto a participar ativamente da vida em sociedade — o que geralmente leva dois anos.
Embora tenham métodos diferentes, esses programas partem da premissa de que a permanência dessas pessoas na rua é o pior cenário, e que a solução para o problema leva tempo, exige recursos e precisa ir além das simples necessidades materiais mais imediatas.
Moraes contrariou AGU e PGR
Na decisão que impediu a remoção de moradores de rua e obrigou prefeitos e governadores a aderirem à Política Nacional Para a População em Situação de Rua, Moraes afirmou que Estado brasileiro tem se omitido quanto ao tema.
A decisão, entretanto, desrespeita os princípios constitucionais. Não cabe ao Supremo Tribunal Federal ditar a forma como o Executivo trata de políticas públicas em que não há violação da Constituição.
Além disso, o próprio decreto que criou a Política Nacional para a População em Situação de Rua afirma que a participação de estados e municípios dependeria de uma adesão formal. Ou seja: governos e prefeituras só participariam do programa se quisessem. Moraes, entretanto, tornou a adesão obrigatória.
A AGU (Advocacia-Geral da União), ainda no governo anterior, negou que o governo estivesse se omitindo e pediu a rejeição do pedido de MTST, Rede Sustentabilidade e PSOL.
A Procuradoria-Geral da República também foi contra. Dentre outros motivos, o procurador-geral Augusto Aras sustentou que a medida cria despesas sem previsão orçamentária, o que viola o artigo 167 da Constituição. Outro motivo, ainda mais relevante, é a divisão dos poderes: “Não cabe ao Poder Judiciário, em ADPF, substituir os Poderes Legislativo e Executivo na formulação e execução de políticas públicas”, ele escreveu. A sigla ADPF é a Ação de Descumprimento de Direito Fundamental, o mecanismo utilizado pelos autores da ação para pedir a intervenção do STF.