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Durante a campanha presidencial, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva classificou como "absurda" a afirmação de que o seu governo implementaria banheiros neutros nas escolas, para acomodar alunos que se identificam como transexuais. "Só pode ter saído da cabeça de Satanás a história de banheiro unissex", ele disse, em um comício com evangélicos de esquerda em outubro do ano passado.
Mas, no nono mês de governo, a ideia já ganhou chancela de um órgão oficial: o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queers, Intersexos, Assexuais e Outras — identificado pela sigla CNLGBTQIA+.
Em 22 de setembro, o conselho publicou uma resolução em que exige, dentre outras coisas, que os estudantes possam usar o banheiro do gênero com o qual se identificam. "Deve ser garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade e/ou expressão de gênero de cada estudante", diz o documento.
A resolução foi assinada pela presidente do Conselho, Janaína Barbosa de Oliveira. Filiada ao PT, ela integra a Secretaria Nacional LGBT do partido. O caso gerou repercussão imediata no Congresso, onde parlamentares de oposição criticaram o teor do documento.
A reação do Executivo foi negar qualquer participação na elaboração do texto.
Governo nega participação
Depois da repercussão do caso, o governo federal emitiu uma nota na qual alega que tudo não passou de "fake news". "O CNLGBTQIA+ tem atuação autônoma, sobre a qual nem o ministro dos Direitos Humanos nem o Presidente da República tiveram participação ou influência na produção da resolução", afirma o comunicado. O ministro dos Direitos Humanos, Sílvio de Almeida, acionou até mesmo a AGU (Advocacia-Geral da União) para agir contra as pessoas que espalharam "fake news" envolvendo o caso. "Quem usa a mentira como meio de fazer política, incentiva o ódio contra minorias e não se comporta de modo republicano tem que ser tratado com os rigores da lei. É assim que vai ser", ele escreveu, em sua página na rede social X.
Mas a verdade é que, na hipótese mais benevolente, o governo faz jogo duplo nesse caso.
Do ponto de vista técnico, o Executivo tem razão quando diz que o CNLGBTQIA+ não possui poder de implementar políticas por conta própria, sem a chancela do Ministério dos Direitos Humanos ou do Congresso Nacional.
Mas um detalhe importante passa despercebido na negativa do governo Lula: a criação do órgão foi feita pelo próprio presidente no Decreto 11.471, publicado em 6 de abril deste ano. O decreto diz que o órgão tem "natureza consultiva e deliberativa".
Além disso, metade dos 38 membros do órgão integra o próprio governo federal. A outra metade vem da "sociedade civil", o que na maior parte das vezes é sinônimo de ONGs com pautas radicais de esquerda. Segundo o decreto, os integrantes da sociedade civil precisam pertencer a organizações empenhadas na promoção "dos direitos das pessoas LGBTQIA+". Isso significa que posições críticas às demandas do movimento não têm espaço no conselho.
Ou seja: o governo é, sim, responsável. Primeiro, por ter criado o conselho com natureza "deliberativa". Segundo, por ter os seus integrantes — os mesmos integrantes que aprovaram a resolução em favor do uso de banheiros femininos por estudantes do sexo masculino e vice-versa.
"Metade dos membros do conselho são do governo e 100% dos membros foram indicados pelo Ministro. Além disso, conforme ata de reunião do conselho, os membros do Ministério de Direitos Humanos e da Casa Civil estavam na reunião que aprovou a resolução", afirma o deputado Marcel Van Hattem (NOVO-RS).
Além disso, a linguagem da resolução não é sugestão, mas de determinação. O texto diz que o conselho "resolve" (ou seja: decide). Todos os seis primeiros artigos começam com o verbo "Deve". O primeiro, por exemplo, diz que "Deve ser garantido pelas instituições e redes de ensino, públicas e privadas, em todos os níveis e modalidades, o reconhecimento e adoção do nome social aos/às estudantes cuja identificação civil não reflita adequadamente sua identidade ou expressão de gênero." O texto chega ao ponto de pedir que pais denunciem as escolas que não cumpram as medidas listadas na resolução.
Do fato de que o conselho não possui poder legal para impor regras não se segue que o conselho não tenha tentado impor regras, ultrapassando suas atribuições.
Riscos às crianças
O documento em favor do uso de banheiros de acordo com a identidade de gênero também provocou reações de grupos que atuam em defesa das mulheres e das crianças.
Maiara da Silveira, diretora da Matria (Associação de Mulheres, Mães e Trabalhadoras do Brasil), diz que a adoção da pauta de gênero nas escolas afeta os estudantes de forma geral, e pode afastar as meninas da educação básica.
Celina Lazzari, porta-voz do Movimento Infância Plena, diz que o jogo duplo do governo era esperado. "Surpreendeu talvez pela velocidade com que eles estão tentando passar essas 'normativas'. Mas, desde que se admitiu no governo federal a entrada e intervenções de grupos antimulheres e anticrianças isso já era de certa forma esperado", diz ela, que atua para impedir que a definição de mulher passe a abarcar também pessoas do sexo masculino.
Para o deputado Van Hattem, o episódio é mais um exemplo de que os conselhos criados pelo Executivo sob a justificativa de ouvir a "sociedade civil" têm ultrapassado suas atribuições e tentado usurpar os poderes do Legislativo. "É preciso rever toda a estrutura de conselhos existente hoje no Brasil para averiguar se realmente são conselhos para aconselhar e, portanto, consultivos ou para determinar. Determinar, legislar, não é função de conselho, e sim do Poder Legislativo", diz ele.