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Um laudo comparativo de imagens emitido pela Diretoria Técnico-Científica da Polícia Federal (Ditec) e pelo Instituto Nacional de Criminalística (INC) foi usado de forma equivocada para agravar as denúncias contra um homem preso no acampamento em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, nos atos do 8 de janeiro de 2023. A única semelhança confirmada pela perícia foi o “contorno das orelhas”, o que evidencia que as imagens avaliadas não representam a mesma pessoa.
No entanto, a Procuradoria-Geral da República (PGR) aceitou o laudo como “prova” de que o réu estaria no interior do Palácio do Planalto durante as ações do 8 de janeiro, e enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedido para atribuir cinco novos crimes contra ele. A solicitação recebeu voto favorável do ministro relator, Alexandre de Moraes, que foi acompanhado por outros sete ministros na votação encerrada em 23 de fevereiro.
“Só que não entrei em nenhum prédio público e o próprio laudo mostra que não sou eu nas imagens, então como me denunciam por esses crimes que podem dar até 17 anos de cadeia?”, questiona o paranaense Daniel Luciano Bressan, que agora responde por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, associação criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado da União.
Segundo o documento do Ministério Público que solicitou o acréscimo desses crimes à denúncia de Bressan, o Laudo de Perícia Criminal Federal nº 1616/2023 “identificou o denunciado por meio de Exame de Comparação Facial”. Por isso, a denúncia afirma que ele “esteve efetivamente nas dependências do Palácio do Planalto, participando ativamente e concorrendo com os demais agentes para a destruição dos móveis”, diz o texto.
No entanto, a “prova” contra Bressan foi utilizada de forma contrária ao que, de fato, representa. “O laudo não identificou esse rapaz”, aponta o doutor em Direito Processual Penal, Gustavo Henrique Badaró. “Estão deturpando, ou por erro ou por má-fe, esse laudo”, continua.
“Estão deturpando, ou por erro ou por má-fe, esse laudo”, aponta o doutor em Direito Processual Penal, Gustavo Henrique Badaró
Segundo o especialista, que teve acesso ao documento da perícia e à denúncia protocolada pelo Grupo Estratégico de Combate aos Atos Antidemocráticos da PGR, “o resultado do laudo não foi positivo, no sentido de muito ou muitíssimo provável que fosse a mesma pessoa, mas foi abaixo de zero, enfraquecendo essa hipótese”.
O que diz o Laudo de Perícia Criminal Federal sobre Bressan?
A análise pericial — datada de junho de 2023 — foi assinada pelos peritos criminais Antônio Scarpelli e Ronaldo Rodrigues da Silva. O documento compara fotos de Bressan, tiradas pela PF no momento de sua prisão, em 9 de janeiro de 2023, com imagens de uma pessoa gravada pelo circuito interno de câmeras do Palácio do Planalto no dia anterior.
As imagens mostram o indivíduo caminhando pelo prédio durante sete minutos. Ele vestia camiseta amarela de faixas diagonais verdes, calça jeans, calçados escuros e usava óculos de grau, enquanto subia a rampa do prédio, atravessava o salão nobre e algumas escadas, sem conversar com outras pessoas ou danificar algo. O homem também protege a boca e o nariz em alguns momentos.
A partir dessa gravação, os sistemas de reconhecimento facial e de análise morfológica — que usam vetor de 512 dimensões para as comparações e apresentam taxa de desempenho avaliada em 99,82%, segundo o próprio laudo — recortou o rosto dele para compará-lo às fotos de Bressan.
Essa análise apontou divergências nos rostos em relação à “linha de implantação do cabelo, forma da fronte e desenho da sobrancelha”. A única semelhança percebida pelos sistemas foi no “contorno da orelha”, o que levou à conclusão de que “os resultados obtidos enfraquecem levemente a hipótese” de que o paranaense seria o homem das imagens.
Então, “se o laudo está dizendo que há menos chance de ser a pessoa, obviamente isso é insuficiente para uma condenação penal e até para uma medida cautelar em relação à autoria”, aponta Gustavo Badaró, que é professor titular de Direito na Universidade de São Paulo (USP).
Laudo enfraquece hipótese de que o homem das imagens seja Bressan
De acordo com ele, laudos como esse usam uma escala de -4 a +4 para indicar se as imagens avaliadas apresentam a mesma pessoa. Nessa escala, o número zero mostra que a análise não enfraquece e nem fortalece a hipótese apresentada, enquanto os outros níveis, para cima e para baixo, mostram os graus de enfraquecimento ou fortalecimento da suspeita.
“Há o nível em que o resultado fortalece levemente a hipótese, fortalece pouco, fortalece muito ou fortalece muitíssimo, e o mesmo em relação ao enfraquecimento”, explica Badaró, citando que o laudo referente a Bressan apresentou avaliação -1, o que reduz a possibilidade de ser ele a pessoa das imagens.
Além disso, o especialista destaca que não há qualquer outra prova de que Bressan tenha ingressado no Palácio do Planalto. “O único elemento é que ele foi preso em ‘flagrante delito’ por estar no acampamento do quartel no dia seguinte, 9 de janeiro”, pontua. “Mas isso é insuficiente para colocá-lo como integrante do ‘núcleo dos executores de atos materiais’ [invasões] e destruição de patrimônio no Palácio do Planalto, Congresso e STF”, completa.
Outros detalhes apontam que Daniel Bressan não entrou no Planalto
Segundo a defesa de Bressan, outros detalhes também são visíveis a olho nu nas fotos avaliadas, como o cabelo do denunciado ser mais volumoso, ambos usarem óculos de modelos diferentes, e o denunciado ter uma pinta na testa, que não aparece nas imagens do circuito interno de câmeras.
Além disso, o vendedor de 37 anos foi fotografado no dia 8 de janeiro por amigos na parte externa dos prédios vestindo uma camiseta camuflada, shorts jeans e botina. “Então, não há a menor possibilidade de o indivíduo gravado pelas câmeras ser o denunciado”, aponta o advogado Ezequiel Silveira, afirmando que, “se ele não entrou no Palácio do Planalto, é impossível que tenha cometido os crimes a si impugnados”.
“Estamos diante de uma acusação genérica de que o denunciado teria, ‘com emprego de violência e grave ameaça’, tentado abolir o Estado Democrático de Direito, mas não há foto, vídeo ou qualquer outro registro que comprove que ele cometeu qualquer desses atos”, afirma Silveira, ao citar ainda outra acusação presente na denúncia.
De acordo com o documento, “manifestantes estariam fazendo publicações em redes sociais questionando a lisura do sistema eleitoral e democrático brasileiro”, o que, segundo o advogado, não é crime. “Até onde se sabe, o verbo ‘questionar” não é elementar de nenhum tipo penal no ordenamento jurídico brasileiro”, aponta.
Quem é Daniel Luciano Bressan?
Morador da cidade de Jussara, no Paraná, Bressan mora com o avô de 89 anos e trabalhava como consultor de vendas antes de ser preso no dia 9 de janeiro de 2023. “Hoje, devido à tornozeleira, estou fazendo ‘bicos’ como ajudante de pedreiro, com dívidas e correndo risco de perder meu carro financiado”, diz.
Segundo ele, sua chegada a Brasília foi por volta das 4h da manhã do dia 8 de janeiro, então não teve tempo de acampar no QG. “Apenas entrei na área do acampamento e, por volta das 13h, subi com o pessoal da passeata”. Na Praça dos Três Poderes, ele bateu uma foto próximo ao espelho d’água e decidiu voltar para o quartel devido à chegada dos helicópteros. “No outro dia cedo, nos deram a ordem de desocupação.”
Bressan permaneceu 67 dias preso no Complexo Penitenciário da Papuda, e afirma que foram os piores dias da sua vida. “Sofri humilhações terríveis e perdi 19 quilos por passar fome naquele lugar”, relata, ao afirmar que, se for condenado, não voltará para a prisão. “Não cometi nenhum crime, e tenho minha consciência limpa”, finaliza.
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