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Uma portaria conjunta do Ministério da Saúde em parceria com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), publicada na última quarta-feira (1º), vedou o acesso de religiosos e o uso de imagens com referências a religião por pessoas que entrem nas aldeias. A proibição é flagrantemente inconstitucional, segundo especialistas consultados pela Gazeta do Povo.
“É terminantemente proibido o exercício de quaisquer atividades religiosas junto aos povos indígenas, bem como o uso de roupas com imagens ou expressões religiosas”, diz o item IV da portaria em um dispositivo sobre proselitismo religioso. O documento, que terá vigor enquanto durar o estado de emergência decretado no dia 20 de janeiro por conta da situação dos yanomamis, tem como objetivo estabelecer normas de conduta nas terras indígenas.
Para o professor de Direito Constitucional André Uliano, a portaria viola tanto a liberdade religiosa como a autonomia cultural indígena, e poderia ser enquadrada como crime na lei contra o racismo, que prevê pena para quem praticar discriminação por religião. Segundo ele, o Estado não pode impedir o proselitismo religioso, que faz parte da liberdade de expressão religiosa, em entendimento já consagrado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). “Quem decide se haverá proselitismo religioso na região são os indígenas, não o governo”, diz.
Uliano explica que atos administrativos têm como primeiro requisito a adequação, isto é, “o ato tem de ser apto, idôneo, para o fim que se busca favorecer”. “No caso, o fim é encerrar crise sanitária e alimentar. O que o proselitismo tem a ver com isso? Alguém vai parar de passar fome, miséria e sofrer de doenças por parar de ouvir falar de Jesus? A medida é inadequada e inidônea e, portanto, inconstitucional”, explica.
Yanomamis que tenham se convertido a certas religiões, por exemplo, não poderiam receber atendimento de ministros da sua fé, o que é inconstitucional. Para Uliano, não ser impedido pelo Estado de receber atendimento religioso é um direito absoluto. “A Constituição obriga inclusive que estabelecimentos de internação tenham atendimento religioso, como no Exército ou nas prisões, por exemplo”, ressalta.
Para o advogado Miguel Vidigal, diretor da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp), a proibição do contato dos religiosos com yanomamis é uma “intolerância religiosa praticada pelo Estado Brasileiro, que atinge não somente os missionários, mas sobretudo os indígenas que, proibidos de praticar toda e qualquer atividade religiosa, se veem desamparados da própria liberdade”.
O advogado Thiago Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), explica que o proselitismo é vital para as religiões universalizadoras, isto é, aquelas em que os fiéis creem haver um chamado universal de Deus à conversão das pessoas. “Elas têm como objetivo levar essa verdade para todo o mundo. Não são religiões para um grupo de pessoas, para um local, para uma região, para uma comunidade e em um espaço de tempo. Não existem limitações para essas religiões. A ideia central delas é cobrir o mundo e levar sua mensagem para todos”, diz.
A portaria, segundo Vieira, tem várias inconstitucionalidades. “Ela viola todo o plexo de direitos da liberdade religiosa e da liberdade de crença, além, por fim, de ser uma violação ao próprio Estado laico, à laicidade estatal, porque é uma interferência do Estado dentro da religião. Ela está dizendo o seguinte: você não pode fazer o que a sua religião nasceu para fazer.”
A Gazeta do Povo entrou em contato com a Funai e com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde na quinta-feira (2) para que prestassem esclarecimentos sobre a portaria que proíbe o contato de religiosos com yanomamis, mas ainda não recebeu posicionamento de nenhum dos órgãos. Foram feitos os seguintes questionamentos:
- A medida não caracteriza preconceito contra religiosos, enquadrável no crime de racismo?
- De que forma a restrição às atividades religiosas junto aos povos indígenas pode ajudar a evitar o quadro de calamidade observado nas terras yanomamis?
- De que forma um responsável pelo atendimento aos indígenas que usasse uma camiseta com a imagem de Nossa Senhora, com um crucifixo estampado, ou com a imagem de um orixá, por exemplo, poderia agravar a tragédia observada nas terras yanomamis?
- Os indígenas convertidos a religiões externas à sua tradição original que quisessem receber atendimento de ministros dessas religiões não estariam sendo vítimas de preconceito religioso?
Cristofobia e ideia de "tradição estática" dos yanomamis originou portaria, dizem especialistas
A hostilidade de antropólogos e membros de algumas ONGs contra missionários cristãos pode ter sido a origem do dispositivo da portaria contra o proselitismo religioso, conforme especialistas consultados pela Gazeta do Povo. Há, de acordo com eles, um preconceito ideológico segundo o qual o cristianismo atrapalharia a cultura dos indígenas.
Isaías Lobão, doutorando em História pela Universidade de Valencia e mestre em Teologia pela Escola Superior de Teologia de São Leopoldo, já fez parte de missões evangelizadoras em algumas aldeias. Ele afirma que é comum entre certos antropólogos a ideia de que o indígena deve ser mantido no seu estado de natureza, e que esse estado seria imutável.
“Eles querem preservar a cultura sem acreditar na autonomia dos povos. É um conceito de imobilidade cultural, de quem crê que o índio tem que ser preservado sem o contato com outras culturas. Quando a gente encontra o indígena, é como se a gente tivesse que tirar uma foto daquela cultura”, diz. “Mas é interessante o juízo de valor: o missionário não pode ir, mas a ONG internacional vai.”
Paradoxalmente, destaca Lobão, essa barreira criada por motivos ideológicos pode abrir caminho para a destruição da cultura indígena. Dificultar a entrada de religiosos, na opinião dele, pode servir justamente para tornar os índios mais suscetíveis ao contato com elementos culturais exteriores nocivos, como a ação de garimpeiros que entram em aldeias e introduzem o consumo de álcool e drogas.
Lobão explica que há missionários especialmente dedicados à codificação das línguas indígenas, como os da missão Aliança Linguística Evangélica Missionária (Alem), que treina evangelizadores para o trabalho de codificação da gramática e a tradução da Bíblia e de outros livros para as culturas indígenas. Um trabalho desse tipo com uma tribo pode significar décadas de esforço.
“Os missionários trabalham com a tradução e com a codificação da língua ágrafa, porque geralmente muitas das línguas são só orais. Depois de codificar, ele pode trazer a escritura para a língua e alfabetizar aquela tribo. Com isso, ele dá uma oportunidade tanto de o indígena conhecer a religião como de fazer o que quiser com a leitura e a escrita”, explica.
Muitas vezes os mesmos antropólogos que demonstram hostilidade ideológica contra cristãos acabam se aproveitando dos mapas linguísticos produzidos pelos missionários. “Em algumas aulas da Universidade de Brasília (UnB) a que eu assisti, eles usavam os mapas linguísticos das missões, mas escondendo o logotipo da missão que fez o mapa”, afirma Lobão, que é evangélico e se graduou em História na UnB.
Entre católicos, a portaria também é vista como preconceituosa. Em texto recente publicado na Gazeta do Povo, Miguel Vidigal, diretor da Ujucasp, ressalta que “não há nenhuma instituição da história brasileira que esteve ao lado dos indígenas como a Igreja Católica”, e que o catolicismo serviu historicamente como um protetor dos indígenas contra abusos do Estado.
“Era comum ver Estados abusando de povos conquistados sem qualquer pudor. A Igreja, que ainda possuía enorme influência no mundo, reafirmou tudo quanto sua doutrina ensina em matéria de caridade, proteção e respeito ao próximo, incluindo os povos indígenas”, diz.
Por isso, para Vidigal, o dispositivo contra o proselitismo religioso é “uma injustiça histórica e moral”. “Não foi a Igreja Católica que colocou aquele sacrificado povo yanomami naquelas condições. Ouso dizer que, se não fossem os missionários, a situação estaria bem pior. Penalizando a Igreja, impedindo-a de toda e qualquer atividade religiosa, o Estado Brasileiro castiga a Igreja por algo de que ela não é responsável.”