Quando o Brasil foi descoberto existiam cerca de 1,2 mil línguas indígenas no território. Hoje, restam 170 e a maioria delas com menos de mil falantes. O que levou a esse processo de extinção linguística? Inegável pensar que os nascidos na terra do pau-brasil falam o português por causa da colonização, mas há por trás disso também uma questão política: a decisão, em 1758, da Coroa portuguesa de impor a língua portuguesa aos nativos. O português já era a língua oficial na administração do país durante o Brasil Colônia, mas foi imposta politicamente no cotidiano da população (era proibido falar o tupi, por exemplo). O objetivo era tornar o português a língua unificadora do Império principalmente na América do Sul. E não foi apenas isso.Ainda no século 18, a corrida do ouro em Minas Gerais promoveu a migração de diversas populações, entre elas de mais portugueses. "Aumentou o número de falantes do português no Brasil e, acrescente a isso, o fato de, nesse mesmo século, haver o ingresso de escravos africanos no país: eles não falavam o tupi e para se comunicar usaram o português. O que quer dizer que o tupi, de uma hora para a outra, diminuiu sua participação na população falante do país", explica o linguísta da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Márcio Renato Guimarães.
O que aconteceu com o tupi é o que, provavelmente, deve ter ocorrido com as outras línguas indígenas que desapareceram. "O tupi foi a língua natural do país que mais influenciou o português. As outras línguas indígenas tiveram participação mínima, elas eram chamadas de línguas travadas, ou seja, idiomas incompreensíveis", afirma o linguísta alemão Volker Noll, um dos autores do livro O português e o tupi no Brasil, da editora Contexto.
Nas comunidades mais isoladas, por outro lado, o tupi ainda era a língua falada nas famílias não só de índios como de mestiços, mesmo passados quase 100 anos do decreto de Marquês de Pombal, por ordem da Coroa portuguesa. "No interior de São Paulo alguns caboclos permaneciam falando o tupi. Narra-se que viajantes europeus passaram pelo interior da província e observaram que as mulheres desses homens, que ficavam no fundo das casas quando ali aparecia alguém estranho, falavam apenas tupi", diz Guimarães.
Um episódio marcante da história brasileira, que mostra o quanto o tupi foi importante para o país, é quando o bandeirante Domingos Jorge Velho foi convocado para destruir o quilombo de Palmares no Nordeste, em 1697. O governo de Pernambuco, para falar com o bandeirante, teve de chamar um intérprete porque ele só se comunicava em tupi.
Já nos países com presença indígena que não tiveram a imposição de uma outra língua (a Coroa espanhola não fez isso na América Latina, por exemplo), é notável a existência forte tanto da língua indígena como a da oficial. O Paraguai é um exemplo: o guarani é bastante praticado, apesar da predominância do espanhol. O mesmo acontece com o maia na América Central e com uma série de línguas indígenas no México.
O que sobrou do tupi no Brasil está concentrado nas tribos indígenas da Amazônia, mas ela é considerada uma língua extinta porque é falada por poucos. "Mesmo a língua indígena mais falada no Paraná, como o caingangue, também corre perigo de extinção porque tem pouco mais de 10 mil falantes", lembra Guimarães.
Influências
Pelo menos no que diz respeito ao vocabulário, o tupi fez importantes empréstimos ao português no Brasil. Segundo Noll, o total de "tupinismos" hoje, incluindo a onomástica, chega a 10 mil. O dicionário Aurélio tem cerca de 2,5 mil verbetes de origem tupi. "Esse empréstimo se deu essencialmente para denominar o ambiente indígena, como nomes de frutos (jenipapo), animais (tamanduá), plantas (cipó) e formas de paisagem (igarapé)", explica Noll. Curioso notar que a prevalência de nomes do tupi aos animais se deu para os de menor porte. "Ao chegar ao Brasil, por exemplo, os portugueses já conheciam a onça e a anta. Já os animais pequenos se diferenciavam bastante e não eram conhecidos na Europa, por isso a influência. Além disso, há animais de grande porte como o cavalo e o boi, que foram introduzidos no país pelos próprios portugueses", explica Noll.
Um tema bastante polêmico entre os linguístas ainda hoje é afirmar que o tupi teria influenciado o português do Brasil a tal ponto que o diferenciou do português de Portugal. "Essa tese é bastante controversa. Digo que é diferente não necessariamente por causa do tupi, mas pelo contato que o português teve no continente americano com outras línguas", afirma Guimarães. Noll acrescenta que a influência do tupi não pode se reduzir a características bem definidas. "Observamos a queda frequente do r final no português falado no Brasil. Isso corresponde à estrutura do tupi, mas também à das línguas africanas que entraram em contato com o português. Além disso, esse traço também aparece em Portugal", diz.
Guimarães diz acreditar que a maior parte das características marcantes do português do Brasil já existia encubada na língua (no português arcaico), como por exemplo, o enfraquecimento da concordância. "Tendemos a marcar menos tanto a concordância verbal como a nominal, por exemplo: eles teve que sair. E isso era uma característica do arcaico. Importante lembrar que nem o português do Brasil nem o de Portugal mantêm a estrutura do arcaico, o que acontece é que algumas características da língua do Brasil percebidas hoje já existiam como vestígios no arcaico", afirma Guimarães.
A colocação pronominal no Brasil também é mais próxima ao português arcaico, assim como a não redução de vogais. "Em Portugal, o português sofre um processo brutal de redução das vogais telefone vira tlfone e isso não havia no arcaico. Quero dizer que as mudanças que ocorrem por aqui não foram inventadas pelos brasileiros, elas já existiam. Talvez elas são maiores por aqui porque estão ligadas ao contato com outras línguas no passado (como o tupi). Mas é algo ainda a ser debatido", conclui Guimarães.
De "frecha" e "frauta" para flecha e flauta
Uma outra mudança que existiu no português não está relacionada ao tupi, mas, sim, à troca das letras "r" por "l" por causa da influência do latim. O português arcaico era totalmente rotacista, o que quer dizer que não existia encontros consonantais com "l", apenas com "r". As palavras, então, eram ditas e escritas da seguinte maneira: "frecha e frauta".
Essa característica é bastante perceptível nas escritas medievais ou em poesias que tinham trechos como "fontes de águas craras". Na carta original de Pero Vaz de Caminha, o escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, há trechos onde se lê: "o capitam chegou a concrusam."
A partir do Renascimento, o "r" começou a ser restaurado para "l" por influência do latim. Aconteceu primeiro na língua escrita e depois na falada. "Não houve uma ordem imposta para isso ocorrer, foi um fenômeno mais ou menos espontâneo, uma espécie de moda, quando alguns intelectuais começaram a estudar o latim que passou a ser um modelo ao português. Houve, então, uma hipercorreção das palavras. Tirava-se o r e colocava-se o l", explica o linguísta da Universidade Federal do Paraná Marcio Renato Guimarães. "Frecha" virou flecha, "frauta" virou flauta, "crara" virou clara e assim por diante. Mas como não era regra, nem todas as palavras foram restauradas. Algumas permaneceram com a grafia original, como prato e prego. "Ainda no século 19, percebem-se algumas tendências. Camões já escrevia glória, mas permanecia escrevendo sembrante", afirma Guimarães.
Outra curiosidade é que em palavras que não eram do português arcaico, o restauro também aconteceu aleatoriamente. A palavra bolsa, de origem grega (bursa), virou "borsa" e foi restaurada para bolsa.
Os nomes próprios não passaram imunes. "Bernardo, por exemplo, é um nome de origem germânica. Houve um tempo em que ele virou Bernaldo, por causa dessas influências do latim, e hoje se fixou no idioma como Bernardo. Já Gerard, que é um nome alemão, virou Geraldo", explica Guimarães. "Se alguém diz Gerardo por aí, vão falar que os pais que deram o nome ao indivíduo são caipiras ou não sabem falar direito. Mas às vezes não é isso, é mesmo a forma etimológica do nome", comenta.