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O anúncio de que a prefeitura de Sobral, no Ceará, vai fabricar 300 mil máscaras hospitalares de uso pessoal é daqueles que produzem efeito positivo imediato sobre a população, assustada com as notícias do avanço do contágio do coronavírus e da falta de máscaras de proteção nas farmácias. Não à toa foi feito pelo próprio prefeito em seu perfil pessoal nas redes sociais.
Na publicação, o prefeito Ivo Gomes (PDT), irmão do senador licenciado Cid Gomes e do ex-candidato à presidência da República Ciro Gomes, anuncia que “requisitou” as instalações de uma fábrica de lingeries da cidade para produzir as máscaras, mas a medida não foi exatamente essa.
O decreto (nº 2396/2020) assinado pelo prefeito e pelo procurador-geral do município no último sábado (4), dois dias antes da publicação de Ivo Gomes nas redes sociais, informa sobre a “intervenção municipal” na fábrica Diamantes Lingerie, por meio de requisição do prédio e de todas as instalações físicas, incluindo máquinas de costura, tecidos, linhas, agulhas, uso da rede elétrica e tudo o que for necessário para a produção de máscaras e de outros equipamentos de proteção individual.
Arbitrariedade
Segundo o professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, Carlos Ari Sundfeld, é razoável que o prefeito queira usar as máquinas de uma confecção para fabricar máscaras, só que para isso ele precisaria requisitar os bens, não a empresa, que é uma pessoa jurídica. Neste caso, a prefeitura usaria as máquinas de costura em caráter emergencial, mas teria que contratar costureiras, pagar os salários, comprar os tecidos e o que mais fosse necessário para a produção das máscaras.
"O que o prefeito fez foi outra coisa. Ele disse que era uma requisição, mas foi uma intervenção. Ao nomear um interventor, quer fazer uma espécie de "caixa dois" da prefeitura. Vai poder tomar dinheiro em banco, nomear pessoas, comprar tecidos, contrair dívidas com fornecedores e depois deixar as contas para a empresa pagar. Ele não pode fazer isso”, diz Sundfeld, que é especialista em Direito Público.
"Intervenção em fábrica é um delírio autoritário, uma verdadeira loucura, um absurdo.”
Carlos Ari Sundfeld, especialista em Direito Público e professor da Escola de Direito da FGV em São Paulo
"Essas medidas estão ocorrendo em todo o país, há muita confusão e muita esperteza também. Tem prefeito requisitando medicamentos, por exemplo, governador requisitando, um toma bem do outro, está bem confuso. Alguns, inclusive, fazem isso para fins midiáticos", observa o professor.
O que diz a Constituição
A Constituição de 1988 prevê que, em caso de eminente perigo para a população - como a atual pandemia de coronavírus -, a autoridade competente pode requisitar propriedades particulares para uso público, assegurado ao proprietário indenização se houver dano ao patrimônio utilizado, mas não autoriza intervenções em empresas.
O decreto de Ivo Gomes, além de inconstitucional, é uma arbitrariedade, na visão do professor da FGV-SP Carlos Sundfeld.
O professor ressalta que se as autoridades públicas pudessem requisitar uma pessoa jurídica, estariam livres para contratar pessoal, fornecedores, contrair dívidas e quebrar a empresa.
"A empresa já estava paralisada justamente por conta da crise. A Constituição permite requisitar bens, mas ao requisitar a empresa, o que ele [prefeito] quer é que a empresa se endivide, adquira bens para pagar depois”, diz Sundfeld.
Situação da fábrica
A Diamantes Lingerie de Sobral faz parte de uma rede de lojas que atende as regiões Nordeste, Norte e Centro Oeste. A fábrica de Sobral tinha sido inaugurada em dezembro com a promessa de criação de 100 empregos em 2020.
A imprensa local informou que as 20 costureiras que trabalhavam na confecção em março foram demitidas quando o governador Camilo Santana (PT) e também o prefeito de Sobral Ivo Gomes (PDT) determinaram o fechamento de empresas e lojas há três semanas. Agora o prefeito diz que vai contratar 30 costureiras para produzir as máscaras e que a intervenção na fábrica deve durar três meses.
O especialista em Direito Público ouvido pela reportagem diz que a empresa pode entrar com mandado de segurança e pedir liminar para impedir a prefeitura de atuar como interventora. "O Judiciário está aí para resolver essas questões, que estão surgindo aos montes em todo o Brasil", diz o professor da FGV-SP Carlos Ari Sundfeld.
A Gazeta do Povo solicitou entrevista à assessora jurídica da Diamantes Lingerie, mas não obteve resposta.