Um preso do 8 de janeiro, de 49 anos, ficou mais de 15 meses sem receber visita da esposa e das filhas — uma menor de idade — por não ter se vacinado contra a Covid-19. “Nunca pensei que enfrentaria algo assim”, relata Elisandra Marques, que se comunicou com o marido Gilberto da Silva Ferreira por cartas entre março de 2023 e junho de 2024. “Enviávamos pelo advogado e pelas mulheres dos outros presos”, conta.
Segundo ela, ligações de áudio eram raras e nunca foi feita uma chamada de vídeo para que a família visse Gilberto. “Até para levar itens de necessidade para ele tinha que comprovar três doses da vacina, então uma cunhada nos ajudava”, menciona Elisandra, que não tinha se vacinado devido ao seu histórico de alergia a medicamentos.
“Já tive reações graves, então preferi aguardar mesmo após a prisão, acreditando que logo o Gilberto seria solto”, conta a gaúcha, citando a Lei Federal 5.010/66 sobre o prazo de 35 dias para apresentação de denúncia de alguém preso.
“Só que passaram 60, 90, 200, 300 dias, e nada da denúncia referente ao Gilberto, e nem do alvará de soltura”, diz a mulher, afirmando que o homem segue atrás das grades por mais de 470 dias, sem que o Ministério Público (MP) tenha apontado crime contra ele.
E a situação se tornou insustentável após seu sogro de 75 anos sofrer um AVC e ficar cego. “Eu precisava conversar sobre isso pessoalmente com o Gilberto, então decidi tomar as duas doses da vacina de Covid-19 exigidas pela Penitenciária Estadual de Canoas (Pecan) para visitar meu marido.”
De acordo com o advogado Gustavo Nagelstein, a defesa apresentou ao menos quatro pedidos de revogação da prisão antes que Elisandra se submetesse à vacinação, mas todos foram negados pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Além disso, o advogado afirma que, depois de a mulher receber as doses do imunizante, o marido teve dificuldade para conseguir a vacina na prisão, onde o mecânico recebeu a primeira dose no início de março deste ano e deveria receber a segunda trinta dias depois.
“Mas não recebeu, então dia 27 de abril protocolamos um pedido diretamente ao ministro para que autorizasse as visitas da família mesmo sem as vacinas. Também não tivemos resposta”, descreve Nagelstein.
Na petição enviada pela defesa, foi informado que “os integrantes da família estavam devidamente imunizados, portando documentação exigida pelo presídio”, mas que o encarcerado não havia recebido a dose complementar. Com isso, Gilberto estava “impossibilitado de concluir seu esquema vacinal por circunstância alheia à sua vontade”, explicava o documento.
Segundo Elisandra, o marido chegou a ser chamado à Unidade de Saúde do presídio para vacinação, mas a atendente teria lhe informado que a segunda dose não havia sido disponibilizada.
“Começamos, então, a conversar com conhecidos, e uma assistente social nos ajudou”, relata a esposa. “Dia 21 de junho, ele recebeu a vacina e pude agendar minha primeira visita”, continua, citando que descobriu uma informação revoltante ao chegar no presídio. “Tinham retirado a exigência de vacinação. Parece que foi só foi para eu tomar mesmo.”
Governo do RS confirma ter retirado exigência de vacinação
A Gazeta do Povo questionou a Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo do Rio Grande do Sul (SSPS-RS) a respeito da necessidade de comprovar a vacinação contra Covid-19, para visitar custodiados, e foi informada de que a obrigatoriedade foi mantida até 20 de junho de 2024.
Segundo nota enviada pela Polícia Penal do Rio Grande do Sul, a regra caiu devido a uma “nova orientação do Centro Estadual de Vigilância Epidemiológica”. Com isso, “visitantes ou pessoas privadas de liberdade” não precisam mais apresentar nas unidades prisionais gaúchas os comprovantes das doses que tomaram contra Covid.
“Porém, a imunização da população carcerária continua sendo prioritária, não só da Covid-19, mas também das principais doenças que acometem essa população”, acrescenta a SSPS-RS.
Lei estabelece que prisões ofereçam assistência de saúde
De acordo com o advogado e professor Gauthama Fornaciari, que atua há 20 anos na área criminal, a dificuldade em relação às visitas da família ao custodiado Gilberto contraria a Lei de Execução Penal (LEP), que garante aos presos o direito de serem visitados por familiares e amigos em dias determinados.
A exceção prevista legalmente, segundo o especialista, ocorre devido a mau comportamento na prisão, e não por falta de vacinas, já que o artigo 14 da LEP garante ao custodiado assistência médica integral e prevê que, se o estabelecimento prisional não puder provê-la, deve oferecer atendimento em outro local.
“O preso não pode ter seu direito de visitas restringido em face de uma omissão do Estado em cumprir sua obrigação”, aponta Gauthama, garantindo que “não há motivação idônea da direção do estabelecimento” na decisão tomada, principalmente considerando que os familiares receberam a vacina e que “não subsiste mais o estado de emergência que vigorava no período da pandemia”.
Não há legislação que exija “passaporte vacinal”
Essa necessidade, inclusive, deveria ter cessado em maio de 2023, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou fim da emergência de saúde pública referente à Covid-19, informa o médico infectologista Francisco Cardoso. “Afinal, desde essa data, as normas relativas à emergência internacional da Covid foram extintas”, garante, citando a Lei 13.979, de fevereiro de 2020, que regulou a pandemia no Brasil.
Ou seja, “exigências burocráticas de entrar em algum local com duas, três ou mais doses da vacina contra Covid-19 não são baseadas em legislação nenhuma”, adverte o especialista. Além disso, acrescenta que, apesar de vários países terem adotado a norma do passaporte vacinal para entrada em estabelecimentos e realização de viagens, ainda não existem estudos definitivos sobre a eficácia das vacinas contra a transmissão do vírus.
“Também não há estudo científico sobre a quantidade necessária de doses da vacina, tanto que começou com uma dose, depois duas e, de repente, precisou da terceira e quarta”, aponta Cardoso. Lembrando ainda que “as normas da OMS não estimulavam obrigatoriedade da vacinação, mas a adesão espontânea”, completa.
Gilberto está preso por mais de 15 meses, sem denúncia
Segundo a defesa, outro problema envolvendo o caso de Gilberto da Silva Ferreira é o tempo de prisão sem apresentação de denúncia pelo Ministério Público (MP), já que o homem segue encarcerado por quase 16 meses sem saber o crime que cometeu.
À Gazeta do Povo, o especialista em Direito Penal Gauthama Fornaciari explica que esse excesso de prazo é inconstitucional e faz com que “o preso sofra punição antecipada sem o devido processo legal”.
De acordo com ele, a situação contraria decisões do próprio STF, como o Habeas Corpus 108.929, de dezembro de 2013, em que a Segunda Turma do STF se refere a um caso semelhante como algo “incompatível com o princípio da razoável duração do processo”, estabelecido no artigo 5º da Constituição Federal.
Além disso, Deltan Dallagnol, ex-deputado federal e ex-procurador da República responsável pela Operação Lava Jato, lembra que é a denúncia do MP que reúne provas da existência de crime para acusar e manter uma pessoa presa. Portanto, “se você não tem prova de crime para acusar, você também não tem para prender”, explica.
Para a defesa de Gilberto, isso viola completamente o princípio da presunção de inocência, mas tem sido negligenciado. “Desde que tivemos acesso ao inquérito, cerca de quatro meses após a prisão, temos argumentado que o réu deve aguardar o julgamento em liberdade porque ainda não tem sentença e não pode ser considerado culpado”, informa o advogado Nagelstein.
“Esse argumento vale para todos os crimes, seja homicídio ou tráfico de drogas, e o fato de ser desconsiderado aqui nos deixa perplexos”, continua o advogado, denunciando também a demora das decisões e a dificuldade de acesso ao inquérito. “Partes do processo são sigilosos até para o advogado.”
A Gazeta do Povo entrou em contato com a Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Sul (OAB/RS) e também com o Ministério de Direitos Humanos (MDH), mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Quem é Gilberto e o que aconteceu com ele no 8/1?
Gilberto da Silva Ferreira é mecânico e trabalhava com o pai na oficina da família no município de Nova Santa Rita, próximo à cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul. Casado há 30 anos, ele é pai de duas filhas – uma maior de idade, já casada, e outra de 14 anos.
“A Sofia vai completar 15 no dia 25 de julho, e o maior desejo dela é que o pai esteja em casa nesse dia porque eles são muito apegados”, diz a mãe Elisandra, comentando que o esposo sempre lutou pela família e que nunca teve medo de expor sua visão política.
“Ele participava de manifestações, ficou perto do Bolsonaro quando o ex-presidente veio a Porto Alegre em 2018, e sempre falou o que pensava sobre a corrupção do PT”, afirma, citando que o marido esteve nas ações do 8/1 de forma pacífica e que gravou um vídeo mostrando isso. “Ele não quebrou nada”, garante a massoterapeuta.
No entanto, Gilberto foi preso dia 17 de março de 2023. Na decisão do ministro Alexandre de Moraes, o magistrado informa que o homem se uniu a outras pessoas “a partir de convocações realizadas por meio de grupos em redes sociais e aplicativos de trocas de mensagens” e que essa “associação armada” teria o objetivo de praticar “crimes contra o Estado Democrático de Direito, notadamente a deposição do governo legitimamente constituído”.
O documento também fundamenta a prisão em um “receio de que os custodiados, em liberdade, possam encobrir ilícitos, alterar a verdade dos fatos, coagir testemunhas, ocultar dados e destruir provas”. Não são apresentadas situações que justifiquem esse receio.
“Até hoje não existe nem processo do Gilberto, só um inquérito mostrando fotos dele na Esplanada dos Três Poderes, nenhuma danificando qualquer patrimônio público”, aponta o advogado, citando mais um problema que tem preocupado a família.
“Agora que iniciaram as visitas, o STF quer transferi-lo para Brasília, distante da esposa e filhas”, diz o advogado, que já protocolou manifestação contrária à transferência, pois a Lei de Execução Penal diz que o réu deve cumprir pena próximo da família. “E ele nem tem pena para cumprir.”
Segundo a esposa, a situação é “inexplicável”. “Minha filha sente muita falta do pai, meu sogro está doente por tudo isso, e eu não sei mais a quem recorrer. Nossa esperança está abalada porque não há motivo nenhum para essa prisão. Infelizmente, já estou perdendo a fé”, confessa, angustiada.
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