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“É uma humilhação após a outra”, lamenta o corretor de seguros Roney Duarte Botelho, de 50 anos. Morador de Campinas, no estado de São Paulo, ele foi detido no acampamento em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília na manhã de 9 de janeiro sem ter ido à Praça dos Três Poderes. Em entrevista à Gazeta do Povo, o homem relata situações degradantes que vivenciou e pede justiça. “Nos trataram como animais”.
Segundo ele, o descaso ocorreu desde os primeiros momentos, quando centenas de pessoas do acampamento foram colocadas em mais de 50 ônibus com a promessa de que passariam por uma triagem e iriam para casa, mas ficaram circulando durante horas por Brasília com idosos, crianças e até cães dentro dos ônibus. “Pessoas começaram a passar mal, estávamos sem nos alimentar e não tinha banheiro”, relata Roney, ao citar o cheiro desagradável que começou a sentir.
No entanto, ele não imaginava que a situação pioraria muito mais na Academia Nacional de Polícia, onde desceu do ônibus e ingressou em uma fila gigante que entoava hinos tradicionais da Harpa Cristã. “Os ‘terroristas’ chegaram cantando para ficar confinados sem infraestrutura, com fome e passando mal”, recorda o corretor. “Lembro que uma pessoa até perguntou onde dormiria, e falaram para ela dormir em cima dos outros. Era um campo de concentração com quase 1,5 mil pessoas.”
Segundo ele, a primeira refeição que fez naquele dia foi por volta das 18h, quando marmitas foram distribuídas e pessoas começaram a passar pela triagem com delegados da Polícia Federal (PF). “Mas era muita gente e esperei três dias e duas noites até chegar minha vez”, conta o homem. “Nesse tempo, dormi sentado em um banco de cimento, sem banho e me sentindo ‘grogue’, como se estivesse sob efeito de calmantes”.
Ao chegar sua vez de conversar com o delegado, Roney tentou explicar que estava acampado no QG de forma pacífica e que não tinha saído da frente do quartel. “Mas ouvi que estava preso e que teria que assinar um documento com uma parte em branco”, recorda. “Minhas pernas tremiam enquanto eu falava que não assinaria, mas me disseram que era ordem de cima.”
Roney seguiu com outros presos até o Instituto Médico Legal (IML) para realização do exame de lesões corporais e depois foi conduzido ao Complexo Penitenciário da Papuda. “Descemos em fila, com as malas no meio das pernas, e pediram que quem estivesse de roupa escura ficasse só de bermuda ou camiseta”, conta o homem, ao relatar que viu mulheres no local e pediu para não se despir ali. “Não adiantou”.
Ele ainda foi encaminhado para revista com uma policial feminina e ficou extremamente envergonhado com a situação. “Precisei baixar a bermuda e ficar pelado, literalmente, agachando, virando de costas e ficando em posições extremamente constrangedoras, algo absurdo mesmo”.
Depois, foi encaminhado à cela com quatro beliches para 22 pessoas. “Dormi várias noites no chão úmido, ao lado do vaso sanitário”. Segundo ele, o colchonete era bem fino, e não havia lençol ou travesseiro. “Na primeira noite, inclusive, não tínhamos nem cobertor, e estava frio”, lembra o morador de Campinas, que também precisou comer com a mão durante dois meses. “Talheres de plástico só foram entregues uma semana antes de eu sair dali”.
“A audiência de custódia foi irregular”
Roney afirma ainda que sua audiência de custódia — que é uma medida para garantir que a prisão preventiva seja adequada, sem abusos e arbitrariedades — ocorreu mais de dez dias após o “flagrante”. “Já atuei como jurado e sei que essa audiência deveria acontecer nas primeiras 24 horas”, explica o morador de Campinas, ao citar também que sofreu mais de 60 dias com dores intensas no ombro, sem receber atendimento.
“Tenho uma inflamação que me incomoda muito, então pedi o analgésico na prisão, mas não me deram e nem deixaram a advogada levar”, recorda o homem, que se ajoelhou e chorou emocionado quando o remédio chegou à sua cela no 62º dia de cárcere. “Eu nem acreditava que teria aquele pequeno alívio em meio a tanto sofrimento”, contou à Gazeta do Povo, em lágrimas.
Além disso, ele conta que passou seu aniversário de 50 anos na prisão dia 3 de março, e o pedido que fez a Deus naquela data foi que conseguisse o alvará de soltura. “Recebi esse presente 11 dias depois”.
Liberdade provisória após 67 dias
Ao todo, foram 67 dias encarcerado, sem usar pente, cortar o cabelo ou fazer a barba. Por isso, Roney nem se reconheceu ao olhar no espelho após esse período. Ele conta ainda que permaneceu mais uma noite na prisão após ter o alvará de soltura expedido e recebeu, então, a tornozeleira eletrônica e instruções de uso. “Agora seria o cárcere em casa”, comenta, ao citar que é obrigado a apresentar-se toda segunda-feira no fórum da cidade, voltar para a residência antes das 19h e que não pode sair aos finais de semana.
“Nem no casamento do meu único filho pude ir porque as regras de uso da tornozeleira permitem apenas um perímetro determinado pela justiça, e a cerimônia foi em outro município”, lamenta o morador de Campinas, que também não consegue emprego e tem passado necessidade.
“Procurei trabalho como vendedor, pois já atuei em concessionária, e algo como corretor de seguros porque tive empresa nessa área, mas não consegui”, conta, ao afirmar que também quis retomar o serviço de motorista de aplicativo que tinha antes de 8 de janeiro, mas não conseguiu devido ao uso da tornozeleira.
“Agora estou sendo despejado da quitinete que moro e já cheguei a ter a energia de casa cortada por falta de pagamento”, relata Roney. “E eu não tinha nem como carregar a bateria da tornozeleira. Tentei usar uma tomada do condomínio, mas fui informado que era proibido.”
Segundo ele – que se separou da esposa durante a pandemia de Covid –, sua família não tem condições de ajudá-lo e, por isso, não tem para onde ir. “Mas eu quero trabalhar para me sustentar, pagar o aluguel e continuar lutando pelo meu país porque não tenho o direito de desistir do Brasil”, afirmou o homem, que tem recebido apoio psicológico gratuito da Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro (ASFAV), e busca doações para se manter. O WhatsApp para contato é o (19) 92002-6153.
Segundo seu filho Roney Duarte Botelho Junior, de 28 anos, o pai está muito abalado emocionalmente com o que vivenciou, e os familiares têm se preocupado. “Desde o início foi muito difícil lidar com a ausência de informações em algo totalmente incomum e desproporcional”, relatou à Gazeta do Povo, pedindo que todo o esforço não seja em vão. “Queremos que o povo brasileiro realmente saiba o que aconteceu”.
Não há previsão de quando retirará a tornozeleira
Para retirar a tornozeleira eletrônica, Roney poderia assinar um acordo de não persecução penal proposto pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para 1.125 denunciados por crimes com penas que não alcançam os 4 anos de reclusão. No entanto, o morador de Campinas afirma que não aceitará nenhum acordo em que precise confessar crimes que não cometeu.
“Eles teriam que tirar as cláusulas que nos prejudicam, nos apresentar como inocentes e ainda pagar uma indenização pelo que fizeram conosco”, diz. Segundo ele, advogados de presos do 8/1 estão verificando a possibilidade de uma contraproposta com essas solicitações, mas ainda não há previsão para desfecho do processo. Por isso, brasileiros como Roney seguem usando tornozeleira eletrônica por tempo indeterminado.
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