Ouça este conteúdo
Um relatório da Defensoria Pública do Distrito Federal (DP-DF), divulgado na tarde desta quarta-feira (22), traz uma série de relatos de presos sob a acusação de terem participado dos protestos do dia 8 de janeiro que apontam maus-tratos e abandono pelo poder público. Os detidos também confrontam a versão oficial dos responsáveis pelo Complexo Penitenciário da Papuda sobre o atendimento ao empresário Cleriston Pereira da Cunha, que morreu no local após ter um mal súbito.
Desde o dia 11 de janeiro, a defesa do empresário vinha apresentando laudos médicos informando sobre seu quadro de saúde delicado, inclusive com alertas sobre o risco de morte súbita - caso ele não recebesse os cuidados adequados fora da carceragem.
Devido ao quadro clínico delicado, ele havia obtido no dia 1º de setembro parecer favorável do Ministério Público Federal (MPF) para sua soltura. Faltava apenas Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), analisar o documento e proceder com a liberdade provisória. Após 80 dias com o documento “estacionado” na mesa de Moraes, Cleriston veio a falecer.
No relatório, a Defensoria afirma que, durante a visita, os responsáveis pelo presídio informaram que o atendimento a Cleriston foi célere na manhã em que ele morreu, com atendimento do setor médico do local e chamamento imediato do Samu, do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal.
Por outro lado, o relatório aponta que “os presos, em uníssono, disseram às duas Defensoras Públicas presentes que o atendimento ao preso foi demorado. Que não havia desfibrilador no local, tampouco cilindro de oxigênio”.
“Contaram que estavam reunidos no pátio, durante o banho de sol, quando Sr. Cleriston Pereira da Cunha começou a passar mal. Contaram, ainda, que a policial penal, que tomava conta deles, entrou em desespero por não saber como apoiar e passou a enviar mensagens, solicitando ajuda. Informaram que os próprios colegas de ala tentaram reanimá-lo, pois um deles é médico e o outro é dentista, oportunidade em que o senhor Cleriston conseguiu, por duas vezes, respirar. Depois de, aproximadamente, vinte e cinco minutos, apareceu uma médica com estetoscópio e aparelho para medir pressão arterial, instrumentos inadequados para a urgência médica”, diz o relatório.
Os presos afirmaram que só após cerca de 40 minutos o atendimento médico que poderia efetivamente salvá-lo chegou. Cleriston, entretanto, já havia falecido.
Os defensores prestaram atendimento aos presos das 7, 8, 9 e 10 – a cela 8 é a que estava detido o empresário falecido.
Os presos contaram, ainda, que Cleriston – que apresentava histórico de diabetes e problemas cardíacos – estava muito entristecido com sua situação, distante da família. Afirmaram que, quando foi preso, o empresário foi conduzido algemado e desmaiado, demorou muito para tomar os medicamentos de que fazia uso e que mais de dez vezes foi atendido ou pediu atendimento médico durante o tempo em que passou preso.
“Era levado ao ‘coró’, por vezes vomitava, depois se sentia melhor e era devolvido à cela. Estava tão fragilizado que algumas vezes era levado com ajuda dos colegas ao banho de sol, já que há uma regra no presídio que nenhum preso pode ficar sozinho na cela enquanto os outros vão ao banho de sol”, diz o documento da DP-DF.
Ao todo, quatro defensores públicos foram à Papuda nesta terça-feira (21), um dia após a morte de Cleriston, para “avaliar questões relacionadas à saúde e alimentação, ao recebimento de material de higiene e contatos com familiares, dentre outras matérias atinentes à garantia dos direitos humanos”.
Presos denunciam maus-tratos e abandono pelo poder público
Quanto à situação de dentro do presídio, os presos relataram que receberam marmita “com caramujos e pedaços de rato” – um dos presos afirmou ter perdido um dente por ter mordido uma pedra que veio dentro da marmita. A maioria relatou que precisa de atendimento médico, psicológico e psiquiátrico.
Um deles, que assim como Cleriston possui parecer favorável à soltura há três meses, tem 68 anos. Ele possui miocardite e mais cinco tipos de comorbidades e relata só receber paracetamol. Aos defensores, ele alega que perdeu 27 kg. Por quatro vezes foi tirado para ser levado ao hospital, mas só foi atendido uma vez.
Vários relaram precisar de medicamentos ou óculos, sem serem atendidos. Um deles relatou ter estreitamento do ureter. Para urinar, ele precisa utilizar sonda, mas a sonda lhe é entregue, cabendo ao preso, sem auxílio médico, passar a sonda, com sofrimento físico e risco de infecção.
Este preso “relata que está há 8 meses sem urologista. Notou que a médica somente em 18/10 fez o pedido do médico específico (urologista). Não recebe medicação. Teve várias infecções. Certa vez, a enfermeira passou uma sonda tão grossa que ele chegou sangrando de volta à cela e o local infeccionou. Tem quatro filhos, o mais novo de 12 anos”, cita o relatório.
Há, ainda, vários casos de presos que tem pedido ajuda para contatar a família, sem sucesso.
Nesta quarta-feira, ao comentar a morte de Cleriston, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, esquivou-se da responsabilidade da Corte de não ter analisado o pedido de soltura do empresário – no pedido, o advogado chegou a informar que mantê-lo preso equivaleria a uma “sentença de morte” devido ao quadro clínico. Barroso, no entanto, afirmou que “a administração do sistema penitenciário não é responsabilidade do Poder Judiciário”.
Denúncias sobre problemas nos alimentos são recorrentes
Matéria da Gazeta do Povo de 17 de outubro já trazia denúncias de advogados de detidos após os atos de vandalismo ocorridos no 8 de sobre as marmitas oferecidas nas unidades prisionais do Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília. Segundo relatos encaminhados à reportagem, as marmitas entregues aos detentos continham não apenas alimentos, mas também pedaços de ratos, pedras e até cacos de vidro.
Além disso, em fevereiro, a Defensoria Pública do Distrito Federal já havia comunicado as más condições de alimentação e higiene na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, conhecida como Colmeia.
Em outubro, a Secretaria de Administração Penitenciária (Seape) respondeu em nota que os contratos de alimentação são rigorosamente fiscalizados pelos gestores do Complexo. No entanto, em relação aos fatos específicos denunciados, a Seape/DF optou por não se manifestar. Confira a nota na íntegra.