O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar nesta quarta-feira (7) se cultos, missas e demais celebrações religiosas podem ser proibidos por decretos sanitários estaduais e municipais. Até agora, apenas o relator, o ministro Gilmar Mendes, proferiu seu voto, favorável às proibições. A ação que motivou o julgamento foi a ADPF 811, que questiona a proibição de cerimônias religiosas impostas por um decreto sanitário de São Paulo. O julgamento continua na quinta-feira (8).
Mendes afirmou que, não fosse pelos decretos, “o nosso quadro sanitário estaria, muito provavelmente, ainda pior do que se encontra”, e que “um aprendizado que nós temos no Brasil” é que “as situações trágicas ou graves ainda podem piorar”.
Ele citou o artigo 12 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, que, entre outras coisas, afirma que a liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos ou liberdades das demais pessoas”. Mendes enfatizou a palavra “saúde” e observou: “É o que diz a convenção!”
Mendes sustentou a tese de que a Constituição só defende o direito à liberdade religiosa como algo absoluto quando trata da dimensão interna da pessoa – o que envolve, por exemplo, a proibição de coagir qualquer pessoa a rejeitar ou aderir a alguma religião.
Citando o sacerdote Piotr Mazurkiewic, teólogo e cientista político, o ministro defendeu que o direito à liberdade religiosa deve ser considerado “absoluto na dimensão interna, forum internum, e limitado na forma de expressão externa, forum externum”.
Depois disso, questionou: “O decreto do estado de São Paulo de alguma maneira impediu que os cidadãos respondam apenas à própria consciência em matéria religiosa? A restrição temporária de frequentar eventos religiosos públicos traduz ou promove dissimuladamente alguma religião? A interdição de templos e edifícios equiparados acarreta coercitiva conversão dos indivíduos para esta ou aquela visão religiosa?”
O relator também citou jurisprudências relacionadas à pandemia para sustentar que o STF já avalizou as medidas propostas pelos decretos, o que inviabilizaria a decisão de Kassio Nunes Marques que derrubou os decretos contrários às celebrações. Ele defendeu que o decreto sanitário de São Paulo atende aos requisitos constitucionais, já que apresenta embasamento adequado sobre os motivos científicos à restrição de celebrações religiosas presenciais.
Além disso, Mendes disse que “há um razoável consenso na comunidade científica no sentido de que os riscos de contaminação decorrente de atividades religiosas coletivas são superiores ao de outras atividades econômicas e mesmo aquelas realizadas em ambientes fechados”, mencionando um estudo americano que analisa uma série de pesquisas sobre o assunto.
“Diante da eloquência dos fatos e da gravidade da situação, migra para o domínio do surreal a narrativa de que a interdição temporária de eventos coletivos em templos religiosos teria algum motivo anticristão”, afirmou o ministro.
No início de seu voto, Mendes destacou a coincidência do julgamento com o Dia Mundial da Saúde e, também, com o dia seguinte ao do recorde de mortos pela Covid-19 no Brasil em 24 horas. Disse que essa é uma tragédia “cujo enfrentamento requer decisiva colaboração de todos os entes e órgãos públicos e, claro da própria sociedade civil”.
O ministro ainda ironizou um trecho da declaração de André Mendonça, advogado-geral da União, que questionou por que o excesso de passageiros no transporte coletivo público de diversas cidades não é tratado com o mesmo rigor que as celebrações religiosas. Mendes disse que o AGU devia ter acabado de chegar de “viagem a Marte”.
”Fui verificar aqui, ‘googlar’, como dizem os mais jovens, e verifiquei que ele era Ministro da Justiça até recentemente e que tinha responsabilidade institucional inclusive de propor medidas à União”, disse o magistrado. A fala de Mendonça, para ele, denota “certo delírio”. “Preciso que cada um de nós assuma sua responsabilidade! Isso precisa ficar muito claro! Não podemos embair, enganar ninguém, até porque os bobos ficaram fora da corte”, esbravejou o ministro.
Juristas evangélicos defendem manutenção das atividades religiosas coletivas em sustentações orais
Juristas evangélicos, entre eles o próprio Mendonça, defenderam a manutenção das celebrações religiosas coletivas nas sustentações orais anteriores ao voto de Mendes.
O AGU afirmou que “sem vida em comunidade, não há cristianismo”. Em seguida, questionou: “Em momentos de calamidades públicas, o que prevalece é a Constituição ou outras regras? (…) Até que ponto essa delegação foi um cheque em branco? (…) Não existe controle? Não se tem que respeitar a proporcionalidade?”
Mendonça também indagou: “Foram impedidas reuniões presenciais de trabalhos? Os governadores fecharam sindicatos para suas reuniões? Fecharam associações? Fecharam partidos políticos? Por que somente as igrejas? Por que essa discriminação?” O AGU fechou o discurso dizendo que “os verdadeiros cristãos estão dispostos a morrer” para preservar a liberdade religiosa.
Thiago Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião, disse que “ser cristão consiste, antes de tudo, em fazer parte do corpo e do sangue de Jesus”, que os cultos e as missas formam “o núcleo essencial da liberdade religiosa para os cristãos” e que impedi-los é atingir a liberdade religiosa em sua natureza mais íntima. “A maioria das liturgias sacramentos cristãos são realizados no templo. Sempre foi assim, desde o início da igreja”, afirmou Vieira.
Segundo o jurista, “não é o estado ou algum ator da sociedade que ordena se um fiel deve rezar ou orar dentro de sua casa ou pela internet”. “O fiel que escolhe seus dogmas e ele que decide onde ele deve orar ou rezar”, destacou Vieira.
O presidente do STF, ministro Luiz Fux, criticou um trecho da sustentação do advogado Luiz Gustavo Pereira da Cunha, que representou o PTB. Cunha finalizou sua fala dizendo: “Para aqueles que hoje votarão pelo fechamento da casa do Senhor, cito Lucas, 23, versículo 34: ‘Então ele ergueu seus olhos para o céu e disse: ‘Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que fazem.’”
Fux disse que, em nome da corte, precisava repugnar a declaração. “Esta misericórdia divina é solicitada aos destinatários que se omitem diante dos males. E o Supremo Tribunal Federal, ao revés, não se omitiu: foi pronto e célere numa demanda que se iniciou poucos dias atrás. Essa é uma matéria que nos impõe uma escolha trágica e que nós temos responsabilidade suficiente para enfrentar”.
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