Formato jurídico inadequado e falta de análise de impacto são alguns problemas levantados pelos juristas.| Foto: Tony Winston/Agência Brasília
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Sob o pretexto de defender o consumidor, o governo Lula coloca em risco os dados de milhões de brasileiros que acessam as redes sociais. Essa é a opinião de juristas ao analisarem a nota técnica da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), ligada ao Ministério da Justiça, que fez mais de 90 “exigências de transparência” às big techs.

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Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam vários problemas no documento: falta de competência sobre o tema, ausência de análise de impacto, falta de clareza sobre a segurança dos dados dos usuários, formato jurídico inadequado e imposições esdrúxulas e ilegais às big techs. Segundo eles, o documento, assinado por Wadih Damous, secretário nacional do Consumidor, pode ser considerado uma aberração legislativa.

“Imagina possibilitar que uma empresa de telecomunicações crie uma API para que qualquer um pudesse ir lá e olhar o perfil do meu celular: quem me liga, quanto tempo fica, qual é a geolocalização desse celular, etc.”

Hélio Moraes, advogado e professor de Direito Digital
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Governo exige a big techs acesso a informações sobre anúncios e perfis de usuários

O documento exige que as big techs criem duas APIs (Application Programming Interface ou Interface de Programação de Aplicação) para disponibilizar informações relacionadas a anúncios publicitários e ao comportamento dos usuários nas redes sociais. As APIs possibilitam a comunicação entre sistemas e, nesse caso, devem permitir que terceiros acessem parte dos dados das big techs.

A primeira API, relacionada a anúncios de publicidade, cria 58 exigências às plataformas de redes sociais. Algumas delas semelhantes às que estavam presentes no PL das Fake News, como as informações de segmentação de audiência definidas pelos anunciantes. Essas exigências podem obrigar as big techs – e as empresas que anunciam nelas – a revelar parte de suas estratégias de venda.

Quanto ao uso de Inteligência Artificial (IA) em anúncios, o documento do Ministério da Justiça exige que as big techs sinalizem os conteúdos produzidos dessa forma ou destaquem quando essa tecnologia tenha sido determinante.

Já a segunda API é ainda mais obscura, segundo os juristas, pois o governo não deixa claro qual é o seu objetivo. Esta interface permitirá que pesquisadores acessem o perfil de navegação de todos os usuários de uma rede social. Informações como a localização geográfica dos autores, histórico de navegação e possibilidade de recuperação de dados temporários, como stories ou mensagens instantâneas, devem ser disponibilizados pelas empresas.

“Quem são esses pesquisadores que terão acesso a todos esses dados? Quais serão os critérios para que uma pessoa possa fazer esse levantamento?”, questiona o advogado e professor em Direito Digital Hélio Moraes. Para deixar mais claro os problemas da nota, o professor faz uma analogia com empresas de telefonia. “Imagina possibilitar que uma empresa de telecomunicações crie uma API para que qualquer um pudesse ir lá e olhar o perfil do meu celular: quem me liga, quanto tempo fica, qual é a geolocalização desse celular, etc.”, exemplifica.

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Governo não explica quem terá acesso aos dados e como vai protegê-los 

Embora o detalhamento sobre como as interfaces devem ser criadas pelas big techs seja extenso, o governo omitiu outros aspectos essenciais do processo. O também advogado e professor em Direito Digital Emerson Grigollete destaca a ausência de relatórios de impacto, de explicações sobre como os dados serão protegidos ou como esses levantamentos serão gerados.

“Tudo isso viola privacidade e intimidade das pessoas porque não ficou esclarecido quem será o responsável por esses dados, quem vai ficar com a sua guarda, como eles serão obtidos. É um completo absurdo”, enfatiza. Ele acrescenta que, apesar da alegação do governo de que essa é uma iniciativa para proteger o consumidor, na realidade, deixa-o mais vulnerável ao Estado e a possíveis vazamentos de dados.

Hélio Moraes observa que, ao especificar detalhadamente como deve ser a interface para coletar informações, o documento também começa a definir regras sobre como as empresas devem lidar com seus anunciantes. As exigências incluem padrões para regras de impressão – quantas vezes a publicação foi exibida para o usuário – e normas para informações sobre investimento em anúncios. “Esse é um passo muito intrusivo”, comenta Moraes.

Para juristas, decisão deveria ter origem no Legislativo

“O Executivo só pode emitir um decreto ou uma nota técnica com amparo legal, o que não é o caso aqui. Essa nota técnica contém várias generalidades, com normas de conteúdo aberto que podem servir para tudo e para nada”, afirma Rodrigo Marinho, advogado e mestre em Direito Constitucional. Marinho, que também ocupa o cargo de diretor-executivo do Instituto Livre Mercado, já informou que a organização vai trabalhar pela anulação do documento.

“Conceitualmente, não faz nenhum sentido essa nota técnica. Para mim, ela é uma aberração legislativa. Essa nota técnica não tem o amparo legal e, inclusive, conflita com a Lei de Liberdade Econômica”, explica Moraes. A Lei 13.874/2019, citada pelo professor, é responsável por proteger a livre iniciativa e o livre exercício de atividades econômicas pelas empresas.

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Outra questão intrigante é que o governo apresentou todas essas exigências por meio de uma nota técnica. Notas técnicas devem ser elaboradas por especialistas e terem a função restrita de fundamentação e orientação sobre determinados temas. Diferentemente do uso feito pela Senacon, uma nota técnica não tem força normativa. Além disso, as regras criadas no documento se dirigem a terceiros e não a servidores. Inclusive, as resoluções, que possuem caráter normativo, devem ser restritas ao funcionamento interno do órgão.

“O que deveria ser apenas um entendimento, a Senacon transformou em uma obrigação de como as big techs devem construir essas APIs, criando ingerências sobre a divulgação dessas informações, exigindo acesso a elas e estabelecendo prazos”, aponta Moraes. As big techs têm um prazo de quatro meses para adequar a interface voltada à publicidade, enquanto o prazo para a API de dados públicos de usuários é de 12 meses.

Futuro da nota técnica é incerto, mas deve ser decidido no Judiciário

Diante de um documento tão problemático, ainda é difícil prever os efeitos que podem ser gerados no setor. Para Grigollette, há riscos de o governo exigir a adesão à nota técnica. “Há o risco, por exemplo, da AGU, que tem tido condutas questionáveis, entrar com uma ação civil pública exigindo a aplicação da nota técnica e dar efetividade a ela”, salienta.

O professor Moraes acredita que a medida exigirá um investimento interno das plataformas na criação das APIs. "O que pode envolver mexer na arquitetura, bancos de dados e outras estruturas da organização para conseguir coletar as informações nesses formatos. É bem complexo", esclarece.

“Não é uma questão de não cooperar como o governo, é que a forma como o governo quer impor a sua visão em relação às plataformas de redes sociais está sendo equivocada, sem seguir o caminho correto”, avalia. Para Moraes, o mais provável é que as big techs recorrerão à Justiça para evitar a exposição de tantas informações privadas.

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A reportagem procurou o Ministério da Justiça para questionar sobre as críticas levantadas pelos especialistas, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]