O advogado René Ariel Dotti, 79 anos, é um homem elegante. Seu escritório, na Avenida Marechal Deodoro, Centro de Curitiba, tem ares aristocráticos. Não faltam no ambiente objetos de arte, instalados debaixo de uma iluminação bem estudada, tal qual uma sala de exposições. Numa das paredes, destaca-se uma ampliação de um dos boletins do dono da casa, dos tempos da faculdade de Direito da UFPR, onde depois faria carreira. Diz muito sobre ele. Não à toa, seus 22 companheiros de trabalho que o reverenciam o chamam de "professor", título que considera graus acima do de "doutor".
Fora do ambiente profissional, a simples menção ao nome do "professor Dotti" não causa menos impressão. Seu legado arranca elogios nos círculos acadêmicos, nos quais é tido como um papa do direito penal e da liberdade de expressão. No mundo da cultura, há quem o veja como um paladino das artes em meio à barbárie. No circuito de políticos e jornalistas mais à esquerda, o fenômeno se repete. Não faltam vozes a citá-lo como o Schindler que os safou dos porões da ditadura de graça e em segredo.
René Dotti soma mais de 50 anos de carreira e admite que já são horas de organizar uma lista das "enroscadas" em que se meteu. Não será um inventário apenas de sóis. Entre 2004 e 2013, sua equipe ganhou na Justiça o direito de demolição de cinco casas listadas como Unidades de Interesse de Preservação, as Uips, nome pomposo e, agora, ineficiente, dado à política de proteção do patrimônio histórico de Curitiba. Causou surpresa, tanto quanto ser o advogado de defesa no caso Carli Filho.
No final de novembro, Dotti subiu à tribuna para participar do 1.º Congresso Paranaense de Direitos Culturais, no MON. Tratou de um tema que lhe é caro, a "proteção jurídica ao patrimônio histórico e artístico". Era um sinal de que esse respeitável senhor, de cabelos alvíssimos e voz pequena, não se furtaria de responder à tal da pergunta que todos querem lhe fazer: "O senhor está se contradizendo?"
Confira trechos da entrevista dada à Gazeta do Povo.
Que prédios de Curitiba o senhor lamenta não existirem mais?
Eu teria de fazer um exercício para lembrar (risos). Acho que me falta tempo para caminhar pelas ruas da cidade, para sentir mais de perto o que se perdeu. Mas diria que sinto falta de determinados edifícios do Centro Cívico, bairro no qual passei a minha infância. Sumiu quase tudo por ali. A casa da minha família não existe mais. Ficava na Rua Marechal Hermes. Era de madeira. Restaram as fotos, que tirei ainda na década de 1960, com uma máquina alemã. Quando me perguntam onde nasci, digo que foi a 200 metros de onde o papa João Paulo II rezou a missa, em 1980.
O senhor foi secretário de estado da Cultura na década de 1980 e nos anos 2000 seu escritório tem conseguido alvarás de demolição para casas históricas. Não haveria aí uma contradição?
Não há incoerência da nossa parte, por uma razão elementar: sou advogado, trabalho com lei. Entendo que falta uma legislação municipal de proteção ao patrimônio para resolver o problema das contestações às Unidades de Interesse de Preservação, as Uips. Não temos segurança legal. Precisamos de uma. Digo que se trata de uma contradição aparente. Quando estive à frente da Secretaria de Estado da Cultura, fiz o tombamento do Bosque Gomm, da Praça Eufrásio Correia. Lembro o quanto foi difícil o processo da Lapa. Chegaram a entrar com uma ação contra mim. Continuo sendo um homem da área da cultura. Não aceitaria fazer a defesa da demolição de um imóvel que me sensibilizasse pelo valor histórico.
Sentiu-se desconfortável com as críticas?
O processo das unidades de interesse que pertenciam ao Hospital Santa Cruz, na Avenida Batel, não procedia. Não fazia sentido o argumento de que tinham de ficar em pé porque por ali passava a Estrada Velha do Mato Grosso. Meu critério foi a de defesa do hospital, que atende pelo SUS, inclusive. No caso [Luiz Fernando Ribas] Carli Filho, sim. Demorei dois anos para falar no assunto, pois podia melindrar a família dos que morreram no acidente. Expliquei meu ponto de vista e a linha da defesa. Saiu uma boa matéria na Gazeta do Povo. Mas o título da reportagem me causou algo terrível. As pessoas se perguntavam como é que podia um advogado acusar as vítimas.
René Dotti, se secretário, teria tombado a fábrica do Matte Leão, no bairro Rebouças?
Há determinados sítios que por si só revelam a necessidade de preservação. O Matte Leão é um deles. A cultura paranaense desde o Império esteve calcada na indústria do mate, o que justificaria a preservação da fábrica. Uma lei não tem como definir o significado de um bem, o que vale para esse caso [em que não há uma arquitetura extraordinária]. Mas pode determinar uma comissão que estabeleça o objeto de tombamento, seu sentido, e que conte com a participação do proprietário...
Mas o proprietário nunca vai querer ter seu bem tombado...
Quando o proprietário não tem direito de contestar, está sendo violado o direito de propriedade. Ele pode apresentar uma documentação capaz de contestar o tombamento. O fato de Curitiba não ouvir os donos de imóveis listados, e não ter legislação específica, sensibiliza os tribunais, que têm anulado os decretos de preservação. É um erro elementar da prefeitura agir assim. Não dá para um assunto desse ficar no arbítrio de um órgão administrativo como o Ippuc. Defendo uma lei que seja clara. O ponto de equilíbrio é que haja uma proteção que não seja objeto de impugnação. Que tenha firmeza necessária para se manter, apesar da resistência do proprietário.
Que formato de lei municipal de patrimônio o senhor defende?
Não se deve esquecer que o tombamento compete ao Estado e à União. Ao município incumbe proteger o patrimônio. Defendo uma lei que tenha participação da comunidade. Quando o processo chega ao governo, a sociedade já o discutiu. É mais seguro. Trata-se de um assunto muito sensível, pois implica numa restrição no direito de propriedade e exige compensação ao proprietário. Repito: eu começaria por uma comissão municipal, com cinco ou sete membros, sendo uma parte de fora da cidade. É preciso criar um fato em torno desse debate, mobilizar a comunidade, a Câmara de Vereadores, fazer audiências públicas.
Os quiproquós envolvendo seu nome aos alvarás de demolição de casas históricas, e à defesa de Carli Filho, nublaram uma questão importante na trajetória de René Dotti: sua ação no combate à ditadura militar. Essa militância está em vias de ser inventariada?
Na época da ditadura militar, apareceu um fotógrafo para tirar fotos minhas. Me disseram que era para o Jornal do Brasil. Quando me mandaram virar de lado, logo vi que não era (risos). A ditadura foi instalada no dia 1.º de abril, Dia da Mentira, e não no dia 31 de março, como querem fazer acreditar. Em 2 de abril eu já tentava tirar da cadeia um oficial detido. Defendi o jornal Última Hora e jornalistas como o Cícero Cattani, Luiz Geraldo Mazza, Sylvio Back, Walmor Marcelino, Milton Ivan Heller, Francisco Camargo. São pequenas e grandes histórias, diluídas por aí. Pretendo organizar tudo isso em livro.
Que mal a ditadura lhe fez?
Não cheguei a ser preso. Mas eu estava em evidência, defendendo muita gente. Uma vez, um auditor me sugeriu cautela nas defesas. Iam investigar meu imposto de renda. No mais, adorávamos o Fidel Castro. Fundamos o Instituto Brasil-Cuba, do qual eu era o orador. Um dia, apreenderam todo nosso arquivo e um reitor de direita expôs o material na UFPR. Respondi processo administrativo. Era assim.