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Por pouco, a Câmara dos Deputados não aprovou, na última terça-feira (6), um requerimento de urgência para votação do Projeto de Lei 2.720/23 da deputada federal, Dani Cunha (União-RJ). A proposta que criminaliza comportamentos considerados discriminatórios contra políticos e autoridades e viola direitos garantidos na Constituição foi retirada de pauta por falta de consenso entre os líderes.
O requerimento de urgência foi liberado para votação pelo presidente da Casa, o deputado Arthur Lira (PP-AL), mas saiu da pauta depois que os partidos Novo, PSOL e PCdoB requereram votação nominal, quando é possível identificar o voto de cada deputado. O acordo anterior costurado com os líderes previa votação simbólica.
A sessão que colocaria em votação a urgência do projeto foi comandada pelo vice-presidente da Casa, o deputado Marcos Pereira (PP-AL). O requerimento foi assinado por líderes do União Brasil, do PL, do PSB e do blocão comandando por Lira.
De acordo com o projeto, quem criticar uma pessoa “politicamente exposta” ou denunciada e até mesmo condenada em processos que ainda não tenham transitado em julgado poderá ser punido com dois a quatro anos de prisão e multa.
São consideradas pessoas “politicamente expostas”: representantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; presidentes e autoridades de outros países; presidentes de partidos políticos; autoridades de entidades de direito internacional público ou privado, como ONU, OMS, OEA e ONGs; entre outros. Os familiares dessas pessoas também estariam blindados pela nova lei.
O texto prevê ainda que o acusado seja impedido de abrir ou movimentar contas bancárias, além de ter negado qualquer pedido para obtenção de crédito junto a instituições financeiras.
Pela proposta, qualquer manifestação legítima da opinião corre risco de ser criminalizada. O conjunto de penas é maior que as previstas no Código Penal para os crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria) e similar a medidas adotadas para acusados de corrupção, tráfico de drogas e terrorismo.
A autora da proposta é filha do ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ), que chegou a ser condenado a mais de 55 anos de prisão em três processos por corrupção. No último dia 29 de maio, na esteira do entendimento que descondenou Lula por suposta incompetência da Justiça do Paraná, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela anulação de uma decisão que havia condenado Eduardo Cunha por recebimento de propina no âmbito das investigações da Lava Jato.
Na justificativa do projeto, Dani Cunha defende o princípio da presunção de inocência dos políticos. “A discriminação praticada em virtude tão só da posição política ou por se encontrar na situação de parte em processo judicial precisa ser expurgada da nossa sociedade, prestigiando as proteções fundamentais concedidas pela Carta Maior”, diz um trecho da justificativa.
Carlos Barros, advogado especialista em direito eleitoral, explica que a proposta, caso seja aprovada, colocará em risco a liberdade de expressão, a livre manifestação do pensamento e outras garantias constitucionais. A iniciativa também violaria a presunção de inocência de quem veicular uma opinião.
“O efeito prático do PL 2720/2023 é submeter a soberana opinião popular a processos burocráticos do Estado. Desenhando: se eu chamar de ladrão um político, se este político não teve esgotados todos os infinitos recursos disponíveis, em todas as instâncias, até a suprema delas, eu estarei incorrendo em discriminação, com pena de reclusão, de dois a quatro anos, e multa”, explica.
“Isto vale para a opinião individual, para a de veículos de imprensa, para eventual embaraçado na assunção de cargos e funções públicas, e até para possíveis senões na movimentação financeira em instituições bancárias. A presunção de inocência foi transformada em certeza de inocência, no caso de políticos. Já o cidadão, este passou de inocente presumido, a culpado manifesto", continuou.
Modelo ditatorial
O projeto de Dani Cunha fere, claramente, a liberdade de expressão e flerta com imposições de regimes totalitários, a exemplos de ditaduras como Cuba, Nicarágua e Venezuela.
Curiosamente, no último dia 31 de maio, a deputada foi às redes sociais criticar a presença do ditador venezuelano, Nicolás Maduro, no Brasil.
“Receber com honras um ditador já é vergonhoso para o nosso país. Agora, permitir violência a uma mulher em pleno exercício da sua profissão é inadmissível”, disse a parlamentar em referência à agressão sofrida pela jornalista Delis Ortiz, que levou um soco no peito de agentes que faziam a segurança de Maduro, a quem Dani Cunha chamou de “criminoso”.
Uma das medidas adotadas por Maduro para se manter no poder foi a criminalização dos adversários. Na Nicarágua, o ditador Daniel Ortega tem perseguido cristãos e encarcerado padres e bispos por críticas ao regime.
Recentemente, um relatório produzido por ativistas dos direitos humanos apontou que todos os presos políticos de Cuba são torturados.
Iniciativas semelhantes à proposta de Dani Cunha para punir críticos também podem ser contempladas em outros regimes repressores, como Coreia do Norte, China, Irã, Vietnã, Turcomenistão, Guiné Equatorial, Arábia Saudita e Eritréia, considerado o país mais censurado do mundo de acordo com uma lista compilada pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas.
Contradição
No início do mês passado, a deputada Dani Cunha comemorou o adiamento da votação do Projeto de Lei 2.630/20, também conhecido como PL das Fake News ou PL da Censura. Apesar de se posicionar contra o projeto que visa, na prática, censurar opiniões e perseguir críticos do atual governo, a parlamentar disse ser “a favor de regulamentar as fake news” para combater os estragos ocasionados por “assassinatos de reputação" na internet.