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A Câmara Municipal de Niterói aprovou em segundo turno, no dia 30 de dezembro, o Projeto de Lei (PL) 278/2020, de autoria do vereador Paulo Eduardo Gomes (PSOL), que aplica uma série de penalidades aos cidadãos que optarem por não serem vacinados contra a Covid-19 após o início da campanha de imunização no município. A proposta aguarda sanção ou veto por parte do prefeito Axel Grael (PDT) em até 15 dias após a data da aprovação.
Além de advertências e multas, medidas severas estão previstas no PL para obrigar a população a ser imunizada, como cancelamento de auxílios sociais, impedimento da realização de matrículas em escolas públicas e particulares e penalidades a empregadores de funcionários que não comprovarem a imunização.
A medida está relacionada a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 17 de dezembro, que autorizou estados e municípios a determinarem que a vacinação contra a Covid-19 seja obrigatória por meio de medidas indiretas, como a restrição ao exercício de determinadas atividades ou o acesso a determinados locais, desde que não recorram a medidas invasivas e coercitivas.
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Punições para quem não tomar a vacina
De acordo com o projeto de lei em questão, a recusa à vacinação será considerada infração grave nos termos da lei 2.564/2008, que dispõe sobre o Código Sanitário do município de Niterói, e as punições serão aplicadas a todo cidadão residente em Niterói que se recusar a vacinar-se contra a Covid-19.
As primeiras penalidades previstas no PL são advertências e/ou multas. Adicionalmente, no entanto, a proposição autoriza a autoridade sanitária do município a fiscalizar estabelecimentos comerciais e demais estabelecimentos públicos e privados para verificar se empregados e empregadores se submeteram à vacinação. Se algum funcionário ou o responsável não possuir a comprovação da imunização, o estabelecimento estará sujeito diversas penalidades, que vão desde multa até o cancelamento da autorização para funcionamento.
Já os beneficiários dos programas de auxílio emergencial do município, que foram instituídos para socorrer a população diante dos impactos socioeconômicos da pandemia da Covid-19, também poderão ter seus benefícios interrompidos.
Os programas de auxílio social que estão no radar do projeto de lei são:
- Entrega de cestas básicas;
- Renda Básica Temporária, que garante acesso à alimentação e a itens básicos de higiene às famílias de alunos da rede municipal de educação;
- Programa Busca Ativa, que oferece auxílio a categorias como vendedores ambulantes, artesãos, trabalhadores da economia solidária, quiosqueiros, pescadores artesanais, entre outros;
- Auxílio financeiro temporário a microempreendedores individuais (MEI) do município;
- Empresa Cidadã, que auxilia micro e pequenas empresas do município com recursos para o pagamento de sua folha salarial durante a pandemia.
Crianças, adolescentes e adultos que não comprovarem a vacinação também não poderão efetivar matrículas em escolas públicas nem particulares.
Projeto de lei é inconstitucional, afirma jurista
Na tese fixada proposta pelo ministro Ricardo Lewandowki (e acompanhada pelos outros ministros) na decisão que autorizou os entes federados a determinar a compulsoridade da vacinação contra o coronavírus, penalidades podem ser aplicadas para tornar a vacinação compulsória desde que: (i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes; (ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes; (iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; (iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade; e (v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente”.
De acordo com o professor de Direito Constitucional e procurador do Ministério Público Federal André Borges Uliano, o projeto de lei é inconstitucional porque não atende a requisitos determinados pela Suprema Corte.
“Parece-me totalmente razoável que haja possibilidade legal de que a vacina seja determinada obrigatória pelos entes, assim como já há com outras vacinas. Mas isso precisa passar por uma série de critérios. Na medida em que ainda não há dados de médio e longo prazo quanto às vacinas contra a Covid-19, não há dados científicos suficientes para atender ao primeiro e segundo itens da tese fixada”, declara o jurista.
O professor de Direito Constitucional reforça que há razoabilidade em ter punições mais drásticas para quem não vacinar a si ou a seus filhos contra várias doenças, como já ocorre no Brasil. Porém, segundo ele, o caso não se aplica à atual fase de imunização contra a Covid-19.
“Há casos de vacinas que já são consolidadas contra doenças bastante sérias. São vacinas com décadas de aplicação, com 100% de eficácia e comprovação no longo prazo. As sanções para quem não se imunizar com essas vacinas são razoáveis. No entanto, no atual momento, não há dados de longo prazo quanto às vacinas da Covid-19, então não é possível garantir os requisitos apresentados pelo STF”, declara, citando que a Organização Mundial de Saúde (OMS) se pronunciou mais de uma vez de forma contrária à obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19 por considerar uma medida autoritária.
Uliano afirma também que na proposição há ilegalidade e desproporcionalidade quanto ao impedimento da matrícula escolar, à perda de benefícios que impactem no mínimo essencial e à perda do emprego. “Uma coisa é a pessoa ser impedida de ir ao shopping. Outra é não poder ter acesso a mecanismos de subsistência e a auxílios emergenciais, e a criança não poder estudar. Tudo isso é essencialmente gravoso”.
O jurista afirma, ainda, que a decisão do STF deveria se aplicar após o início das campanhas de vacinação caso fosse detectado que uma parcela significativa da população estaria resistente à imunização, e não num momento em que sequer há vacinas disponíveis.
“Tendo em vista que, segundo as pesquisas, temos alta adesão de pessoas que desejam se vacinar, e o problema atual é a falta de vacina – e não a falta de pessoas que queiram se vacinar –, então não temos sequer indícios de que haverá problema de ausência de procura. Por ora não há a necessidade da imposição de medidas dessa natureza”, observa. “Há vários países desenvolvidos, com adesão à imunização contra o coronavírus inferior ao Brasil, segundo pesquisas de opinião, que já declararam que não tornarão a vacinação contra a Covid obrigatória neste momento”.
Parlamentares fazem representação no MP e comparam lei a ações de estados totalitários
Para impedir que as medidas propostas no PL 278 prosperem, o vereador de Niterói Douglas Gomes (PTC) e o deputado federal Carlos Jordy (PSL-RJ) protocolaram uma representação no Ministério Público pedindo que sejam realizadas ações cabíveis para sustar os termos da lei ou que a proposição seja declarada inconstitucional.
“O projeto tem por objetivo coagir os citadinos a se vacinarem sob pena de perderem direitos adquiridos concedidos pelo ente municipal. (...) Se levado a cabo o espírito da (futura) Lei, será por meio da coação, opressão e massacre estatal a sua execução, tornando-se um absurdo típicos dos estados totalitários. Ademais, será um convite ao desemprego, à pobreza, à violência e a todas as mazelas consectárias”, afirmam os parlamentares na representação.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o vereador Douglas Gomes disse que o que mais preocupa é o artigo que autoriza a interrupção de benefício emergencial. “Quem recebe esse auxílio são pessoas mais pobres, que estão passando por problemas financeiros, que perderam seu emprego e sua renda durante a pandemia. Ao invés de usar o convencimento, estão tentando obrigar a população usando a fome para isso”, declara o parlamentar. No Twitter, Douglas Gomes comparou a lei a um decreto do Partido Nazista.
“Vemos sérios problemas jurídicos nesse projeto. Ele não trata, por exemplo, de pessoas que não podem tomar vacinas, como as gestantes. Por outro lado, obriga as crianças a serem imunizadas sendo que no desenvolvimento das vacinas não há uma grande contemplação da imunização das crianças”.
Além da representação no Ministério Público, o vereador afirma que ajuizará uma ação popular contra a medida.
Autor da proposta afirma que lei tem caráter pedagógico e que as sanções dificilmente serão aplicadas
À reportagem, o vereador Paulo Eduardo Gomes reconheceu que a proposição é polêmica e que “em um primeiro momento é agressiva e dura”, mas afirmou que ao longo do tempo de aplicação da lei, caso sancionada pelo prefeito, se tornará interessante. O parlamentar destacou também que o projeto servirá para discussão, reflexão e aprendizado a respeito da vacinação contra a Covid-19 e que dificilmente as sanções previstas serão aplicadas às pessoas.
“É necessário, na nossa avaliação, que tenhamos um processo absolutamente pedagógico que possa lançar a discussão com tempo suficiente na população. Quanto às punições, ninguém vai entrar na casa das pessoas com arma na mão e obrigá-las a se vacinar. O projeto está cumprindo seu papel de lançar uma luz numa discussão importante que as famílias estão discutindo entre si”, declarou o vereador.
“Niterói gastou R$600 milhões para proteger a vida das pessoas desde o início da pandemia, entre oferta de cestas básicas, auxílios a microempreendedores individuais, apoio à economia. São R$600 milhões gastos para proteger a vida das pessoas e a economia. Você acha que é exagero exigir como contrapartida que as pessoas se vacinem?”, observa.
Paulo Eduardo Gomes também afirmou que as penalidades previstas no PL 278 estão presentes também no Código Sanitário de Niterói. A retirada dos auxílios emergenciais e o impedimento de matrícula escolar, entretanto, não estão presentes na norma.