“Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, sem o uso de violência ou ameaça, é caracterizado como crime de furto pelo Código Penal brasileiro. A pena prevista é reclusão de um a quatro anos e pagamento de multa. Segundo as estatísticas, trata-se de um dos crimes mais cometidos no país. Só para se ter ideia, apenas no estado de São Paulo, foram registrados quase 500 mil casos de furtos em 2021. Mas, se depender de um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, ao menos uma parte desses registros simplesmente vão deixar de existir, pois não serão mais considerados crimes.
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A proposta, Projeto de Lei 4540/21, de autoria de um grupo de deputados do PSOL e do PT, propõe mudar o Código Penal brasileiro para incluir duas categorias de furto. A primeira delas seria o chamado “furto por necessidade”, definido no projeto quando uma pessoa, em situação de extrema pobreza, subtrai (furta) para saciar a fome ou necessidade básica sua ou da família. Já a segunda categoria seria o de “furto insignificante”, onde o objeto furtado é de pequeno valor e oferece “insignificante lesão ao patrimônio do ofendido”.
A partir dessas duas categorias, o projeto de lei determina que “não há crime quando o agente, ainda que reincidente, pratica o fato nas situações caracterizadas como furto por necessidade e furto insignificante, sem prejuízo da responsabilização civil”. Na prática, isso significaria que se alguém furtar alimentos para consumo, por exemplo, não ficará mais sujeito às penas previstas para o crime de furto, mesmo que repita o ato várias vezes. Nos casos em que o furto for de pequeno valor, mas não for motivado por necessidade, em vez da pena de reclusão, deverá ser aplicada “uma pena restritiva de direitos, ou aplicar somente a pena de multa”.
“Além de desnecessário, uma vez que a jurisprudência brasileira já aplica o princípio de insignificância nos casos de furtos, o projeto é vago e está orientado por premissas falhas”, avalia Maurício Souza, especialista em Direito Penal. Ele ressalta que a proposta não especifica, por exemplo, como delimitar a insignificância. “Do jeito que está, o texto dá a entender que a avaliação seria feita em comparação com o patrimônio da vítima. Assim, um furto [no valor] de mil reais de um grande supermercado que fatura milhões poderia ser insignificante. Já o de um doce de um vendedor de rua, não. Claro que estou exagerando, mas as leis precisam ser claras o suficiente para evitar interpretações equivocadas”, explica.
Combate ao “superencarceramento” e ao “racismo institucional”
Na justificativa do projeto, a deputada Talíria Petrone, líder do PSOL na Câmara, defende que o objetivo da proposta seria combater o “superencarceramento”. Ela alega que os crimes de furtos são responsáveis por grande parte das condenações e prisões. Ao descriminalizar o furto nas situações de necessidade e insignificância, segundo ela, haveria impacto positivo na diminuição da superlotação do sistema prisional.
Mas mais importante do que isso, no entender dos autores da proposta, seriam os efeitos no combate ao “racismo institucional”. Para a deputada, o superencarceramento incide majoritariamente sobre a população negra. “O tratamento mais severo do sistema penal contra pessoas negras e pobres se articula com o racismo institucional”, defende Talíria. Embora reconheça que já existam orientações legais sobre a não aplicabilidade de penas a furtos insignificantes, a deputada considera que a jurisprudência atual “restringe-se a situações muito específicas” e que os critérios determinados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nem sempre são aplicados pela Justiça.
Nesse sentido, uma vez que o Judiciário teria se mostrado falho, a deputada defende que cabe ao Poder Legislativo determinar que o furto, "nas hipóteses em que norteado por necessidade premente do agente, e nas hipóteses de dano irrisório ao patrimônio, não seja considerado crime”.
São coautores do projeto os deputados Natália Bonavides (PT-RN), Sâmia Bomfim (PSOL-SP), Vivi Reis (PSOL-PA), David Miranda (PSOL-RJ), Fernanda Melchionna (PSOL-RS), Glauber Braga (PSOL-RJ), Áurea Carolina (PSOL-MG) e Ivan Valente (PSOL-SP).
STF já definiu critérios para insignificância
O chamado princípio da insignificância ou bagatela é aplicado no Direito Penal a condutas cujo resultado não tem gravidade suficiente para levar a uma ação judicial e nem posterior punição do réu. Conforme o Supremo Tribunal Federal (STF), há quatro requisitos que devem ser observados para que se possa aplicar esse princípio a um crime. São eles: mínima ofensividade, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade de lesão jurídica provocada. Crimes praticados mediante violência ou grave ameaça à pessoa, tráfico de drogas e crimes de falsificação não podem ser beneficiados.
Já em casos de furto de pequeno valor e por necessidade, o princípio é bastante utilizado. Isso porque por sua própria natureza, os furtos não envolvem ações violentas ou perigosas contra a vítima (mínima ofensividade) e dificilmente incluem periculosidade social. Já a inexpressividade da lesão jurídica normalmente se refere ao valor monetário e natureza do bem subtraído, enquanto o grau de reprovabilidade normalmente trata da motivação. Todos esses fatores são avaliados caso a caso e, se a autoridade jurídica ou policial entender que todas as quatro condições estão presentes, o princípio pode ser aplicado.
No caso de aplicação por autoridade policial, os próprios delegados podem determinar a insignificância. Nesse caso, não é feita a prisão do autor, nem instaurado inquérito automaticamente. Os autos do flagrante e depoimento do acusado são encaminhados ao Ministério Público. Então, o MP poderá, caso entenda que o princípio de insignificância foi aplicado incorretamente, posteriormente, pedir a abertura de investigação e levar o processo adiante. "Importante lembrar que a bagatela sempre será um caso de exceção. Um mãe que desesperada furta comida para alimentar o filho, por exemplo. Por isso a necessidade de avaliar cada caso", ressalta Souza.
Fim da criminalização de furto trouxe caos nos EUA
Nos Estados Unidos, uma lei que também previa a descriminalização do furto em certas circunstâncias foi aprovada na Califórnia em 2014. Até então, a legislação penal californiana não previa distinção formal entre roubo e furto. Na prática, isso significava que qualquer subtração de bem, com ou sem violência e independentemente do valor, era tratado como crime de roubo. Entretanto, em 2014, uma mudança aprovada por meio de um plebiscito alterou o texto da lei e popularizou o conceito de shoplifting, ou furto em lojas.
Segundo o texto aprovado, quem entrar em uma loja durante seu horário de funcionamento, e subtrair itens cujo valor total não ultrapasse US$ 950 dólares - o equivalente a pouco mais de R$ 5 mil - pode ser enquadrado pela lei do shoplifting. Um detalhe importante é que para isso a promotoria precisa provar que a pessoa entrou na loja já com “intenção de furtar”. Só assim o autor do furto pode ser condenado a até 6 meses de cadeia e/ou pagamento de multa de até US$ 1 mil.
A chamada Proposition 47 acabou mudando a forma como os furtos em lojas passaram a ser tratados não só pelo sistema judiciário norte-americano, mas também pela polícia e mesmo pelos próprios comerciantes. Desestimulados pela baixas perspectivas de condenação e ressarcimento, muitos lojistas têm desistido de prestar queixa de furtos. Seguranças já não tentam coibir ou prender os delinquentes, e agora se limitam a observar os furtos que acontecem no interior das lojas. Apenas se o valor roubado ultrapassa “a cota” de US$ 950 é que há alguma reação. Da mesma forma, policiais e promotores não têm mais interesse em coibir esse tipo de prática.
“Por causa dessa lei, a Califórnia está estendendo um convite aberto a qualquer pessoa para entrar e tomar. Simples assim, pois eles sabem que a polícia ou os promotores não se incomodarão com uma queixa de contravenção e que o pessoal da loja não os impedirá”, explicou Lee Ohanian, professor de Economia e pesquisador do Hoover Institution, da Universidade de Stanford, em um artigo recente sobre o tema.
Outra consequência da proposição foi a libertação imediata de presos já condenados por furto em lojas e que cumpriam pena nas casas de detenção da Califórnia. A estimativa é de que pelo menos 33 mil presos tenham sido beneficiados.
Brasileiros são contra medida
Mas se na Califórnia a proposta de descriminalizar furto foi aprovada pela maioria da população – ao menos da população votante, no Brasil, diversas pessoas já deixaram bem claro que são contra a proposta dos deputados do PSOL e PT. Em uma enquete aberta no site da Câmara dos Deputados, no final de dezembro do ano passado, para que a população se posicionarem sobre o PL 4540/21, 94% dos que opinaram disseram que “discordam totalmente” da proposta.
“Não há nada de positivo nessa proposta. É um tapa na cara das pessoas honestas. É só ver o que está acontecendo nos Estados Unidos. Uma onda infernal de furtos e roubos sem precedentes. Tem pessoas na Califórnia que não fecham mais seus veículos para evitar que quebrem os vidros”, disse um dos participantes da enquete. “Como o país pode oferecer segurança jurídica mediante a esse tipo de PL? Lamentável”, questionou outro.
Houve também quem aproveitasse para criticar o próprio Legislativo: “Demonstração de um Legislativo sem um pingo de civismo, um insulto à boa ordem e ao que é direito de fato! Imoralidade pura propor um projeto desses!”. Ou ainda: “Busquem leis que ajudem ao povo a ter dignidade e não PL como essa que degrada os valores humanos e diminuem a pessoa”, disse outro comentarista. Sugestões também foram feitas: “Essa mudança não resolve o problema social. Políticas públicas, geração de emprego e criação de oportunidades para capacitação e apoio ao empreendedor seriam mais viáveis e com maior força de solução”, comentou um cidadão.
Dos comentários registrados, poucos se mostraram favoráveis ao projeto. “A proposta é muito importante, porque não deixa de prever punição proporcional, não abre margem para casos de violência ou dano ao patrimônio de outrem e ainda combate a superlotação nos presídios”, escreveu um apoiador do texto. “Em nenhum momento foi dito que o crime ficaria impune, e sim, substituir a pena por restrição de direitos. Isso diminuiria a superlotação nas celas e daria lugar para julgar crimes mais sérios”, comentou outro.
Após ser apresentado à Câmara do Deputados, o Projeto de Lei 4540/21 acabou apensado a outro projeto de lei, o PL 1244/11, que também propõe alterações no Código Penal em relação ao crime de furto. Agora, os dois projetos e outros que tratam sobre o mesmo assunto serão analisados em conjunto pelas comissões da Câmara de Deputados. Apenas após a etapa de discussão e aprovação dentro das comissões for concluído é que a proposta poderá ser levada ao Plenário para votação.
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