No íntimo dos salões de beleza, fala-se de tudo. Amores, política, fofoca do bairro; vai do gosto da cliente. O pessoal da Unidade de Saúde Vila Augusta sabe bem disso, e recrutou as depiladoras da região para convencer as mulheres da Cidade Industrial de Curitiba (CIC) a fazer os exames preventivos ginecológicos, e manter a saúde em dia. É o projeto “depiladora amiga”.
Mais da metade das depiladoras do bairro participou da capacitação, que levou uma manhã de segunda-feira, para aproveitar a folga do salão. Foram quatro horas de aprendizado sobre o que pode ser indício de uma Doença Sexualmente Transmissível (DST), periodicidade de exames e como funciona a unidade.
Exemplo
Muita gente está de olho no “Depiladora Amiga”, da unidade de saúde Vila Augusta. Já está nos planos ampliá-lo para outras unidades da Cidade Industrial de Curitiba (CIC), segundo a diretora do distrito sanitário da região, Cynthia Calixto Fraiz.wt Os vizinhos da regional Santa Felicidade também demonstraram interesse. A informação chegou aos ouvidos da chefe da Vila Augusta, Marcia Regina Bora. A depender da idealizadora do projeto, Andressa Gulin, ele vai voar.
A ideia partiu da professora Andressa Gulin, que comanda uma equipe de estagiárias de Medicina na unidade, que funciona sob a estratégia de saúde da família. De início, o objetivo era apenas reunir alunas, equipe multidisciplinar e a população em um projeto coletivo para resolver um problema real. Foi aí que, na observação dos indicadores, a baixa taxa de exames preventivos saltou aos olhos.
O cálculo é feito com base da diretriz do Ministério da Saúde, que toma como base mulheres entre 25 e 59 anos (prorrogáveis até os 65). Após dois anos consecutivos de resultados “normais”, a mulher deve retornar a cada três para um novo exame.
Para bater a meta, a unidade teria de realizar esses exames em um terço das mulheres nessa faixa etária, todos os anos. No mês de abril, das 51 mulheres esperadas, apenas 40 compareceram. Em maio, 46 e, no frio de junho, apenas 21 exames foram feitas. Em julho, após o trabalho com as depiladoras, o número aumentou para 52.
Na outa ponta, um cálculo informal aponta que muitas mulheres batem cartão na maca do salão de beleza uma vez a cada vinte dias. No caso da depilação íntima, muitas vezes as profissionais da estética são as primeiras a avistar indícios de infecções ou DSTs.
Uma simples mancha pode ser indício de algo grave, por exemplo; já uma ferida pode não ser grande coisa. Fato é que muitas mulheres não reparam (ou não veem) estes sinais; outras recorrem a suas depiladoras com a dúvida: “devo me preocupar?”.
Claro que não cabe à esteticista fazer um diagnóstico. Mas é ela quem vai orientara a cliente e amiga a procurar ajuda profissional, manter a saúde em dia.
Encaminhamento
Elania de Oliveira Souza mora na CIC há 23 anos. O salão na Vila Augusta foi aberto há cinco, depois que ela brigou com uma chefe que insistia em usar cera “de caldeirão”, aquela que fica lá na panela e é reaproveitada diversas vezes. Ia contra seus princípios de higiene e trabalho.
Hoje, Elania é depiladora amiga. No seu salão conta até com um “protocolo de encaminhamento” para mandar as clientes à unidade de saúde. Não é que seu o local tenha se tornado uma “porta de entrada” oficial para o SUS. Mas o bilhete funciona como um lembrete às clientes de que é preciso marcar o preventivo.
Para fazer o exame, basta chegar no balcão do “postinho” e agendar dia e horário. Muitas vezes dá para marcar para a mesma semana; na seguinte, no máximo.
Para a professora Andressa, o projeto funcionou porque levou em conta a realidade da região e envolveu a comunidade. “Funciona no nosso país, na nossa cultura, onde temos que descentralizar a saúde e empoderar a comunidade para cuidar da sua própria saúde. Esta é a filosofia do programa saúde da família e também do projeto depiladora amiga”.
Programa retrata ideais da “saúde da família”
Levar a saúde à vida das pessoas e não os doentes ao sistema de saúde. Este é o ideal que guia a estratégia de saúde da família, que está por trás do projeto “depiladora amiga”. “Não é uma invenção brasileira. Na Europa, em outros lugares, há a figura do médico da família, que faz este contato direto com a população”, explica o diretor de Atenção Primária à Saúde Paulo Poli, da Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
Curitiba vive hoje uma fase de transição. Das 109 unidades básicas do território, 65 são de saúde da família. Nestas, técnicos, enfermeiros e agentes comunitários trabalham integrados com um médico generalista, que acompanha o dia-a-dia dos pacientes. Este profissional funciona como um filtro. De uma consulta de rotina, pode detectar três, quatro demandas. Se necessário, aciona diretamente um cardiologista ou psiquiatra que atende a rede. Se o paciente é encaminhado para este especialista, o médico “da família” também acompanha.
As outras 44 unidades funcionam sob o modelo tradicional. Em geral com um pediatra, um clínico e um ginecologista, que se revezam entre si no papel de “porta de entrada” para o sistema.
No modelo da saúde da família “você valoriza ao mesmo tempo o generalista, que cuida de uma parte dos problemas, e do especialista, que passa a atender naquilo para o qual ele foi formado”, defende Poli. Um dos efeitos é a queda no número de encaminhamentos hospitalares, que caíram de 20% para 16% nas unidades tradicionais, e de 18% para 14%, nas de saúde da família, de 2012 para cá. Na Inglaterra, o índice é de 4,5%.
No “Depiladora Amiga”, os salões de beleza viraram replicadores da campanha de prevenção. Mas nada teria dado certo sem o trabalho de bater perna das agentes de saúde, acompanhadas das estagiárias do terceiro ano de Medicina da Universidade Positivo.
Ysabelli Vieira, 28 anos, deu conselhos a uma cliente sua - que é agente de saúde -ainda quando o projeto estava sendo gestado. Hoje ela é depiladora amiga, e também curso o técnico em Esteticista e Cosmetologia da UP, por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec).
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