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Em setembro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro sancionou uma lei que aumentou a pena para maus-tratos contra animais. Agora, outros dois projetos em tramitação no Congresso buscam ampliar a proteção jurídica dada a esses seres.
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Um deles, o PL 145/21, quer transformar os animais em sujeitos de direito, isto é, em participantes de relações jurídicas com direitos próprios. Um animal seria, segundo o termo técnico usado na proposta, um “sujeito despersonificado de direito”. Com isso, poderia ser parte em processos judiciais.
O projeto foi aprovado nas duas Casas do Congresso, mas recebeu modificações no Senado e elas ainda precisam ser aprovadas na Câmara. Defensores do projeto afirmam que a Comissão de Meio Ambiente, presidida pela deputada Carla Zambelli (PSL-SP), estaria dificultando a aprovação da emenda com as mudanças.
Outro projeto em tramitação – o 1355/21 – tem como objetivo proibir “que práticas cruéis e as relacionadas à criação de animais sejam classificadas como patrimônio cultural imaterial do Brasil”. Trata-se de uma reação a outras propostas que têm tramitado na Câmara e em algumas assembleias legislativas estaduais buscando o reconhecimento de atividades como o rodeio, a vaquejada e a criação e reprodução comercial de animais como patrimônios culturais do Brasil.
Defensores dos direitos dos animais alegam que o objetivo desses projetos seria usar o status de patrimônio cultural para se blindar contra acusações de crueldade. “Nenhum dos parlamentares que estão propondo esses projetos está preocupado com a preservação do patrimônio cultural. É uma estratégia para tentar imunizar essas atividades que envolvem animais para tentar evitar que elas venham a ser proibidas”, diz o juiz federal Vicente de Paula Ataide Junior, pós-doutor em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Práticas cruéis contra animais já são proibidas pela própria Constituição, por meio do artigo 225, que veda atividades que “provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
O texto da Carta Magna não estabelece uma definição de crueldade, que costuma ser feita caso a caso, por meio de normas específicas. “O Conselho Federal de Medicina Veterinária, por exemplo, tem a resolução 1236/2018, que estabelece para os médicos veterinários o que deve se entender por crueldade. O artigo 32 da lei dos crimes ambientais diz que é crime abusar de animais, maltratar animais, ferir, mutilar e utilizar animais indevidamente em experiências científicas… A gente se serve de outras leis ou resoluções para compreender, caso a caso, o que vem a ser crueldade”, explica Ataide Junior.
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Um animal pode ser sujeito de direito?
Na opinião de Ataide Junior, o projeto que quer tornar os animais sujeitos de direito tem sido interpretado de forma equivocada. Os animais, segundo ele, “não serão considerados pessoas”. “O projeto não confere personalidade jurídica aos animais. Ao contrário, deixa bem claro que os animais, apesar de serem sujeitos de direito, não terão personalidade jurídica”, diz.
O jurista considera que “ser sujeito de direito é ser portador de determinados direitos – somente os direitos que, eventualmente, a legislação outorgar”. “Os seres humanos, nós todos, por termos personalidade jurídica, temos todos os direitos possíveis. Quem tem personalidade jurídica pode fazer tudo aquilo que não é proibido”, diz. “Ser sujeito de direito significa não poder ser tratado como coisa. Não poder ser explorado, violentado, tratado cruelmente…”, acrescenta.
Para o advogado Gustavo França, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), essa distinção é equivocada. “Do ponto de vista da realidade, sujeito é aquilo que tem personalidade. O direito é uma relação devida à pessoa”, afirma. “Ser sujeito de direito é uma característica natural da pessoa, porque ela é sujeito. Ela pode se colocar no mundo como ‘eu’”.
França diz também que tratar um animal como titular de um direito é “uma impropriedade em relação à realidade”. “O animal não estabelece relações jurídicas com ninguém. Não é titular de nenhuma faculdade que se possa chamar de direito. O animal não tem dignidade nem capacidade moral de ser titular de nenhuma faculdade. É um algo, não é um alguém”.
Discordar da classificação de animais como sujeitos de direito, segundo França, não significa considerar que um animal não possa ser protegido pela lei. “Mas ele deve ser protegido como um objeto. A lei protege o animal, tutela o animal em determinadas circunstâncias. Proíbe certas atividades e exige que o animal seja tratado de determinada maneira. Mas ele é um objeto da lei, é um tema da lei”, explica.
Para França, legislações de proteção aos animais são legítimas porque “o animal, por natureza, tem uma existência que possui uma complexidade maior do que um objeto ou uma pedra”. “Ele tem vida. Mais do que a vida simplesmente vegetal, ele tem uma série de faculdades sensíveis. O animal é um ser que se coloca, entre os seres naturais, não na mesma posição de uma pessoa, porque não é racional, mas por cima dos meros objetos – do mundo mineral ou até mesmo do mundo vegetal. Ele tem capacidades a mais e uma vida sensível”.
Se a lei for aprovada, até os animais da pecuária passariam a ser sujeitos de direito. Ataide Junior destaca que esses animais “não têm direito à vida, mas têm o direito de, mesmo dentro da pecuária, não serem tratados de forma cruel”. “Uma das maiores crueldades que existe na pecuária é, por exemplo, fazer amputação de partes do animal – como fazem amputação da cauda dos porcos – sem anestesia. Como é possível amputar a cauda do porco ou o bico da galinha sem anestesia? Isso é falta de humanidade”, diz.
O juiz considera falsa a ideia de que a pecuária poderia ser prejudicada com a aprovação do PL 145/21. “A pecuária é uma atividade econômica garantida pela Constituição. Nenhuma lei infraconstitucional pode impedir a pecuária e o consumo de carne. O projeto não atinge as atividades econômicas como a pecuária, porque elas têm fomento constitucional”.
Lei daria a animais proteção semelhante à de crianças
Caso o projeto seja aprovado e sancionado, animais poderão ser autores de demandas na Justiça por meio de seus representantes humanos. “Por exemplo, o animal que é vítima de maus-tratos passa a ter direito a receber indenização, inclusive por danos morais. Claro que essa indenização será administrada pelo representante legal dele, da mesma forma que acontece com as crianças”, explica Ataide Junior.
No campo do Direito Animal, segundo o especialista, é comum comparar os animais com crianças e nascituros. “Ninguém vai duvidar que uma criança recém-nascida é sujeito de direito, muito embora ela não entenda nada e não tenha ainda a capacidade intelectiva para falar a respeito de seus direitos. Os animais têm uma situação muito semelhante. Eles precisam de direitos como crianças precisam de direitos”, afirma.
Na visão de França, usar essa comparação para justificar que animais ganhem a condição de sujeitos de direito é um equívoco filosófico. O problema desse argumento, explica ele, está na incapacidade de diferenciar o que se chama, em filosofia, de ato e potência – grosso modo, aquilo que algo é atualmente e aquilo que algo pode vir a ser.
“A criança tem a potência de desenvolver as suas faculdades racionais. O animal, não. A questão aqui é que a criança possui uma natureza racional. Ela tem uma natureza de pessoa, de sujeito. Ela só não desenvolveu a sua faculdade racional ainda. Mas ela pode e deve usar a razão. Não entender isso é não entender o básico. É como olhar para uma criança e um filhote de pato e dizer: ‘os dois não voam’. O pato vai voar; a criança, não. Da mesma forma, a criança é um sujeito de direito pela sua natureza. O animal não tem essa natureza”, explica.
França acrescenta que só pode ser sujeito de direito uma pessoa capaz “de pensar em si mesmo como ‘eu’”. “O filósofo Immanuel Kant colocava isso, inclusive, como a marca da dignidade. O que caracteriza a dignidade dos seres racionais é a ideia ‘eu’. Se outro ser, outro animal, pudesse pensar na ideia ‘eu’, ele teria dignidade e seria uma pessoa. Pessoa é aquele que tem consciência de si, que se afirma no mundo como uma individualidade consciente”.
Uma das justificativas apresentadas pelos defensores do projeto de lei é que os animais são seres sencientes – isto é, têm sentimentos como dor, prazer e medo – e, por isso, deveriam ser considerados sujeitos de direito. França critica também esse raciocínio. “Ter a capacidade de sentir, ter sentidos, não dá a ninguém o atributo de sujeito. Uma pessoa em coma, por exemplo, perde as capacidades sensíveis, mas nem por isso deixa de ser sujeito de direito. A capacidade de sentir não é a fonte da subjetividade, não é a fonte da personalidade”.