A decisão do governo Lula de proibir o uso de celulares em escolas é vista como um acerto por profissionais da educação e da saúde ouvidos pela Gazeta do Povo, e também por representantes da direita. O uso indiscriminado de smarthphones colocam crianças e adolescentes em riscos, que incluem o acesso a conteúdo inadequado e problemas cognitivos originados pelo excesso de tempo em frente às telas. Apesar da aceitação social, a iniciativa do Ministério da Educação ainda deve enfrentar o trâmite moroso do Congresso Nacional.
O ministro da Educação, Camilo Santana, já anunciou a apresentação de um projeto de lei para proibir o uso de celulares em escolas públicas e particulares, prevista para este mês de outubro. A medida faz parte de uma série de ações do governo Lula em comemoração ao Dia das Crianças, no próximo dia 12.
O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), presidente da Comissão de Educação (CE) da Câmara dos Deputados, já sinalizou apoio ao tema. Na última quarta-feira, ele colocou em pauta um projeto de lei com termos semelhantes aos citados por Camilo Santana. Durante a discussão, o apoio dos membros da CE contra o uso de celular nas escolas foi unânime. A votação, no entanto, foi adiada para a próxima sessão, que ainda não tem data definida. Após passar pela Comissão de Educação, o projeto deverá ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça, sem necessidade de ir ao plenário da Câmara, antes de seguir para apreciação no Senado Federal.
Uso de celulares em sala de aula compromete o desempenho dos alunos
“Os alunos que têm acesso ao celular em sala de aula têm dificuldade em se autorregular e evitar o uso do aparelho, aparentam estar muito viciados em jogos e outros aplicativos. A gente chama atenção uma, duas, três vezes, mas eles nem escutam”, afirma Phelipe Queiroz, 30, professor de ciências de alunos de 11 a 15 anos. “O que tem no celular é muito mais atrativo do que, possivelmente, o conteúdo que eu tenho que ministrar”, completa.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apresentou estudos sobre a utilização de celulares em escolas na divulgação do Pisa de 2023, avaliação internacional que mede o desempenho de estudantes de 15 anos. O levantamento indicou uma associação negativa entre o uso de tecnologia e o desempenho acadêmico dos alunos que utilizam os celulares imoderadamente. Os professores entrevistados pela OCDE concordaram que o emprego dessa tecnologia em sala distrai os estudantes e que, para o uso ser eficaz, é necessário que o aluno tenha capacidade de se autorregular.
Nas duas escolas em que Queiroz trabalha, o uso de celular em sala é proibido. Em uma delas, a fiscalização acaba sendo menos rigorosa, o que permite que os alunos utilizem o aparelho durante as aulas. “Na escola em que os estudantes são proibidos de levar o celular para o ambiente escolar, o ritmo é outro. A forma como eles aproveitam o intervalo é diferente, por exemplo. Eles aproveitam o tempo livre para brincar no parque, jogar bola e correr”, relata.
Acesso a conteúdos inadequados impacta saúde mental das crianças
Infelizmente, não é raro que estudantes tenham contato com conteúdos inadequados dentro das próprias escolas. Seja por meio de acesso à pornografia ou situações de bullying que envolvem o uso desrespeitoso de imagens de colegas.
“Não se tem no mundo virtual os cuidados necessários para proteger a infância e a adolescência. As crianças são vulneráveis e facilmente enganadas por pessoas mal-intencionadas, capazes de identificar uma criança ou um adolescente por trás das telas”, afirma Luci Pfeiffer, pediatra doutora em Saúde da Criança.
Pfeiffer, que foi uma das relatoras do documento #MenosTelas #MaisSaúde elaborado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), destaca que é comum o acesso à pornografia, trocas de imagens erotizadas, incluindo “nudes”, entre adolescentes. “Existe um mundo perverso por trás das telas, o qual os pais, adolescentes e crianças precisam estar cientes. Nem sempre uma criança ou um adolescente terá a capacidade de se proteger desses perigos”, acrescenta.
Tecnologia se desenvolve tão rápido que dificulta estudos sobre impactos
O acesso à internet, sem a supervisão de um adulto, por um aparelho pessoal, impede o controle do que está sendo visto por crianças e adolescentes. A rede oferecida no ambiente escolar acaba sendo menos vulnerável, isso porque costuma ser mais segura, contando com restrição de sites e controle de acesso por login.
O professor Phelipe Queiroz sugere que as escolas busquem soluções para aproveitar a tecnologia de forma benéfica em sala de aula. “A escola pode montar salas de informática para pesquisas em bibliotecas digitais, aplicação de formulários ou outro tipo de atividade. Assim, a tecnologia é usada de forma pontual e ajuda a mitigar os desafios que os celulares têm trazido para nós professores”, propõe.
Segundo um relatório da Unesco, a rápida evolução tecnológica dificulta a realização de pesquisas que possam fundamentar políticas públicas e legislações sobre o tema. “Algumas conclusões podem ser tomadas a partir de estudos em longo prazo, na medida em que as tecnologias amadurecem, mas há um fluxo infinito de novos produtos. Ao mesmo tempo, não é possível medir facilmente todo e qualquer impacto, dada a onipresença, a complexidade, a utilidade e a heterogeneidade da tecnologia”, ressalta o documento.
Falta de limites no uso de telas pode provocar atrasos cognitivos
Cerca de 12 anos atrás, desenhos infantis como “Baby Einsten” ganharam popularidade com a promessa de estimular o desenvolvimento de bebês, tornando-os mais inteligentes. Diante do fascínio das crianças pelas telas, muitos pais acreditavam nos supostos benefícios. No entanto, pesquisas demonstram o contrário: os bebês que ficam expostos às telas por longos períodos apresentam atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem.
Na verdade, o tempo gasto em frente às telas substitui momentos que poderiam ser usados para brincadeiras e reduz a qualidade da interação com os pais, que são muito mais estimulantes para o desenvolvimento infantil. “Não basta tirar o celular, não basta os pais proibirem ou controlarem o uso. É preciso oferecer a escuta e atenção aos filhos, e no caso das escolas, que os professores também se envolvam ativamente com os alunos”, destaca a pediatra Luci Pfeiffer.
O documento #MenosTela #MaisSaúde, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), reforça essa visão: “Nada substitui o contato humano, o apego e o afeto, o olhar, o sorriso, a expressão facial e a voz dos pais, familiares e cuidadores, com supervisão constante para garantir segurança e estabelecer limites, especialmente durante a primeira infância, de 0 a 6 anos”.
Estudos já indicam relação entre o uso excessivo de telas e problemas de atenção
Estudos indicam que o uso excessivo de telas na infância está associado a problemas de déficit de atenção e hiperatividade. Crianças com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) podem ter os sintomas agravados, como desatenção e impulsividade, quando expostas por longos períodos a meios digitais. Esse cenário contribui para a banalização dos diagnósticos de TDAH, já que o uso indiscriminado de telas dificulta diferenciar comportamentos de crianças com e sem o transtorno.
Além disso, fatores como falta de rotina, horários inadequados de sono e menos horas de descanso do que o recomendado podem estar associados à falta de atenção em crianças. O perfil educativo dos pais também desempenha um papel importante.
“Quando você levanta o histórico, normalmente são crianças que vivem num ambiente muito permissivo, de pouca exigência, em que os pais acabam tomando como natural que a criança não pare sentada, não exigem progressivamente que a criança tenha um comportamento mais adequado", afirmou Simone Fuzaro à Gazeta do Povo, em julho deste ano.
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