STF julga se marco temporal para demarcação de terras indígenas vale a partir da Constituição de 1988 ou não| Foto: Ministério da Defesa
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A possibilidade de que a Fundação Nacional do Índio (Funai) ou outras organizações possam exigir a desapropriação de áreas rurais, a qualquer momento, com o pretexto de que, no passado longínquo, poderiam ter sido ocupadas por povos indígenas, tem sido vista com preocupação por representantes do governo federal, governos estaduais e do agronegócio.

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Caso o Supremo Tribunal Federal (STF) mude o entendimento que a própria Corte tem seguido há pelos menos dez anos - de que os índios só podem retomar terras que ocupavam até o marco temporal de 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada -, poderá haver uma enxurrada de invasões ilegítimas, também em áreas urbanas, e de pedidos de revisão de ações já julgadas no passado. Se isso ocorrer, apenas a aprovação de um projeto de lei no Congresso poderá reverter a insegurança jurídica.

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O julgamento no STF havia sido retomado nesta quarta-feira (15), mas foi suspenso após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. A Corte já decidiu que ele terá repercussão geral.

No caso em pauta no STF, o Recurso Extraordinário 1.017.365, o Instituto do Meio Ambiente (IMA) de Santa Catarina alega que indígenas da etnia Xokleng ocuparam irregularmente parte da Reserva Biológica do Sassafrás. A tribo já possui uma reserva indígena homologada, com 14 mil hectares, mas, nas últimas duas décadas, passou a reivindicar uma área maior, que abarcaria parte da área protegida - e que é de responsabilidade do instituto catarinense, um órgão estadual. À época, a Funai consentiu e reconheceu o direito dos indígenas à ocupação da área estendida.

Em 2007, o governo de Santa Catarina conseguiu na justiça o direito à reintegração de posse após um trecho da área ambiental ter sido ocupada por indígenas. Um dos argumentos citados foi o de que os Xokleng não ocupavam tradicionalmente a área da reserva biológica, que foi criada em 1977. Após derrotas da Funai na primeira e na segunda instância, o caso chegou ao STF.

Até agora, apenas o ministro Edson Fachin votou. Relator do caso, ele se posicionou contra o marco temporal, mesmo o STF tendo decidido, em cerca de dez processos no passado, pelo contrário. Fachin afirmou que, por causa da violência contra os povos indígenas, o critério de ocupação “tradicional” precisa ser adequado para incluir terras que já não tinham a presença desses povos quando a Constituição foi promulgada.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, adotou a mesma postura. "Este procurador-geral manifesta concordância com o afastamento do marco temporal quando se verifica de maneira evidente que já houvera apossamento ilícito da terra dos índios. É preciso que se diga com clareza: haverá casos em que mesmo não havendo posse por parte dos índios em 5 de outubro de 1988, a terra poderá ser considerada como tradicionalmente ocupada por eles", argumentou.

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Já a Advocacia-Geral da União (AGU), que representa o governo federal, defendeu que apenas as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas em 1988 podem ser consideradas como pertencentes aos povos nativos. O presidente Jair Bolsonaro também tem dado declarações contra a flexibilização do marco temporal. “Se a proposta do ministro Fachin vingar, será proposta a demarcação de novas áreas indígenas que equivalem a uma região Sudeste toda. Ou seja, é o fim do agronegócio”, disse ele na semana passada.

Risco à segurança jurídica

O IMA, um órgão estadual, é representado no processo pela Procuradoria-Geral do Estado de Santa Catarina. O argumento apresentado pelo procurador Alisson de Souza é o de que, sem um critério objetivo, proprietários de imóveis em todo o país poderiam estar sujeitos a perder suas terras sem indenização. Além disso, ele afirma que a possibilidade de remarcação de terras indígenas já existente gera incertezas. Por isso, a defesa do marco temporal. “Além de ser a interpretação constitucional adequada, este é um critério que traz uma certa objetividade à questão tanto para os indígenas quanto para os não-indígenas”, afirma.

Para o procurador, a atribuição da palavra final à Funai, por meio de laudos antropológicos - como quer o ministro Fachin -, trará muitas incertezas para proprietários de imóveis em áreas reivindicadas por indígenas. “A partir do momento em que você diz que a definição depende de uma análise caso a caso, e essa análise se dá por meio de uma avaliação antropológica, existe a possibilidade de que várias outras reivindicações sejam feitas pelos indígenas”, critica.

O procurador diz ainda que o governo federal tem mecanismos para demarcar novas terras indígenas em áreas não tradicionalmente ocupadas por eles. Neste caso, entretanto, os proprietários de terras teriam de ser indenizados.

Repercussões para o agronegócio

A possibilidade de mudança no marco temporal também preocupa produtores rurais. Representantes do setor alegam que a rejeição de um critério objetivo ameaça a previsibilidade jurídica para proprietários de terras em todo o país. Se o marco temporal não for reconhecido, outras áreas podem ser reivindicadas pelos indígenas - potencialmente, qualquer área, já que os povos nativos eram, em grande parte, nômades e se espalhavam por todo o território brasileiro.

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A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) é uma das organizações que atuam no caso como amicus curiae. Para o chefe da assessoria jurídica da CNA, Rudy Ferraz, a manutenção do marco temporal é importante para a estabilidade jurídica. “É a única interpretação constitucional que consegue conformar todos os direitos fundamentais previstos na Carta da República, buscando segurança jurídica, estabilidade das relações sociais no país e solução pacífica das controvérsias”, afirma.

O representante da CNA também lembra que o próprio STF já reconheceu a validade do marco temporal em julgamentos anteriores. Uma mudança de posição agora, diz ele, traria um sinal preocupante para proprietários de terras. “A maior consequência é assentar a segurança jurídica e a paz fundiária com base na interpretação constitucional consolidada há mais de uma década pelo Supremo Tribunal Federal, resguardando o direito de propriedade e o direito do usufruto dos índios, o que propiciará a harmonia social”, argumenta.

Segundo Ferraz, as consequências da rejeição do marco temporal se estendem sobre áreas urbanas, já que povos indígenas podem reivindicar áreas que hoje pertencem a cidades - mesmo que eles já não ocupem essas regiões há décadas. Sem uma regra que delimite claramente os critérios para a “ocupação tradicional”, diz ele, o que resta é a discricionariedade dos antropólogos da Funai para decidir sobre a presença de comunidades indígenas em uma determinada região. Se levado ao extremo, o critério de presença tradicional se aplica, por exemplo, à atual cidade de São Paulo, fundada em um território dos índios guaianases.

A reportagem também procurou a Funai e o Conselho Indigenista Missionário (entidade que também foi ouvida pelo STF e que se opõe ao marco temporal), mas não obteve resposta.

Projeto de Lei sobre o marco temporal

Um projeto de lei apresentado ainda em 2007 na Câmara dos Deputados também tenta resolver o impasse. O texto propõe que o marco temporal de 1988 seja reafirmado na lei para evitar contestações. Depois de anos sem tramitar, a proposta foi retomada e, em junho deste ano, aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Foram 40 votos a favor e 21 contra.

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Mesmo que o texto avance e também receba o aval do plenário da Câmara e do Senado, entretanto, há questionamentos sobre a eficácia da medida, já que ela provavelmente já entraria em vigor após o STF ter decidido sobre o marco temporal. A Procuradora da República Marcia Zollinger, da Câmara de Populações Indígenas do Ministério Público Federal, já afirmou que a proposta fere a Constituição.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]