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Divergências

Protesto do 4/6 testa capacidade de união contra autoritarismo judicial

Deltan Dallagnol protesto
Deltan Dallagnol em protesto em Curitiba após sua cassação pelo TSE. (Foto: Marcos Tosi/Gazeta do Povo)

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As manifestações marcadas para o próximo domingo (4) estão colocando à prova o poder de união daqueles que são contrários ao crescente autoritarismo do Poder Judiciário no Brasil e à decisão de cassação do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR). Nos últimos dias, as desavenças entre grupos políticos que coincidem nestas pautas fizeram a mobilização para o protesto esmorecer, suscitando dúvidas sobre a dimensão do evento.

Até a terça-feira (30), o Movimento Brasil Livre (MBL) era o principal organizador, o que vinha afastando o interesse de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) de ir às ruas. Na terça, o MBL anunciou que não vai mais participar da manifestação porque ela "tem sido sabotada por algumas alas do bolsonarismo" e porque se sente desprezado por Deltan.

"Nossa militância foi convocada para adesivaços e atos com faixas; nossas lideranças estavam se organizando em todas as cidades onde teriam os atos. Tudo isso fizemos sob ataques dos bolsonaristas e com pouca solidariedade de outros agentes. Mesmo da parte do próprio Deltan, temos visto o seu esforço de se dissociar e se distanciar do MBL", justificou o grupo em um comunicado.

Ex-integrante e atual oponente do MBL, o vereador de São Paulo Fernando Holiday (Republicanos), que apoia as pautas defendidas, mas é contra a participação nos protestos do 4/6, disse via Twitter que o grupo "arregou porque teve que engolir a verdade irrevogável: goste ou não, Bolsonaro é a maior liderança de direita do país". Antes da desistência do MBL, Holiday havia postado: "Se for para voltar às ruas, que não seja pelas mãos dessa gente!".

Sem o MBL, o principal mobilizador do evento é, agora, o movimento Vem Pra Rua – que, assim como o MBL, foi um dos principais aliados de Bolsonaro até 2019, mas antagonizou com o ex-presidente e seus apoiadores nos anos seguintes.

Nos últimos dias, o Vem Pra Rua tem apelado ao discurso da necessidade de união. "Do lado de lá estão todos unidos", diz um cartaz de convocação às manifestações. "Enquanto não unirmos o Brasil contra os abusos e o desgoverno, acumularemos derrotas até o ponto em que será irreversível", afirmou o grupo em uma postagem no Twitter. "União é nosso principal desafio enquanto direita brasileira, mas é também nossa única chance de reequilibrar o jogo político do Brasil", disse em outra.

Parlamentares como o senador Sergio Moro (União-PR) e os deputados Marcel Van Hattem (Novo-RS), Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) e o próprio Deltan também têm destacado a necessidade de superar diferenças contra o autoritarismo do Judiciário.

"A gente vive numa democracia. A gente não vai concordar em tudo. É normal ter divergência. Agora, quando você tá diante do arbítrio, diante dos desmandos, diante do desgoverno, diante de um governo de vingança, diante de tribunais ultrapassando as linhas da lei sobre as nossas liberdades… Há uma escalada. Você tem a censura. Você tem presos políticos. Agora você tem cassação de mandatos de adversários políticos. Aonde isso vai parar? O que vai acontecer amanhã se eu não agir hoje, se eu não for às ruas hoje, se eu não me manifestar hoje?", questionou Deltan em entrevista recente ao programa Pânico, da Jovem Pan.

Apoiadores de Bolsonaro ficam em dúvida sobre participação no protesto

Mesmo sem o MBL na equação, alguns apoiadores de Bolsonaro veem outras barreiras para a participação no evento.

Em geral, eles aprovam a pauta dos protestos, mas levam em conta uma declaração recente do ex-presidente, que pediu a seus apoiadores para evitar manifestações no momento. Para ele, é necessário focar, agora, na CPMI do 8 de janeiro.

"Essa CPMI é muito importante para nós, mais do que qualquer outro movimento que porventura alguém queira fazer por aí. Até peço: não façam. O mais importante para nós no momento é a CPMI. Estou vendo as pessoas querendo marcar reunião, povo na rua… Eu peço: não façam isso", afirmou Bolsonaro no último dia 25, no Encontro Nacional dos Presidentes do PL.

A fala está em sintonia com o que personalidades próximas do ex-presidente têm manifestado. O ex-chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) do governo Bolsonaro, Fabio Wajngarten, fez um alerta contra os protestos no mesmo dia da declaração de Bolsonaro.

"Faz-se mais do que necessário avaliar quem esteve de fato ao lado do governo nos últimos 4 anos antes de sair apoiando e promovendo manifestação oportunista. A direita teima em ser vagão e rebocada por quem nunca conseguiu ser locomotiva", afirmou Wajngarten.

Parlamentares próximos do ex-presidente mas que já se solidarizaram publicamente com Deltan após a cassação têm mantido silêncio sobre a manifestação do 4/6. É o caso, por exemplo, dos deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e Bia Kicis (PL-DF).

A deputada Carla Zambelli (PL-SP), que havia convocado seus seguidores nas redes sociais para a manifestação do 4/6, publicou um vídeo no Instagram se desculpando pela atitude e dizendo que não tinha visto o posicionamento de Bolsonaro.

Além da falta de engajamento dos parlamentares mais próximos do ex-presidente, outra barreira para a participação de apoiadores de Bolsonaro nas manifestações é o grau de solidariedade a Deltan. Muitos deles acusam o deputado paranaense de oportunismo em sua aproximação recente ao grupo político.

Deltan, por sua vez, diz compreender que o ex-presidente não se envolva no 4/6. "Eu respeito o presidente Bolsonaro e jamais cobraria dele que fosse às ruas, ou que ele tivesse qualquer posição de frente, até porque ele, se defender a ida às ruas, pode ser responsabilizado por qualquer coisa que aconteça. Agora, eu vou estar com aqueles brasileiros que amam o Brasil, são corajosos e querem defender justiça, liberdade e democracia no dia 4 de junho", comentou o deputado à Jovem Pan.

Direita ainda tem dificuldades de colocar pautas acima de divergências, dizem analistas

Lucas Berlanza, presidente do Instituto Liberal, enxerga a aversão à presença de movimentos que se opuseram a Bolsonaro como uma falta de senso de proporção. "A destruição vigente da democracia brasileira, de repente, não é grave o bastante para irmos às ruas", ironiza. "Ao contrário do que esse discurso prega, as manifestações de 4 de junho estão sendo convocadas por organizações distintas, algumas delas bastante atacadas pelo MBL, como o Novo e o deputado Marcel van Hattem. A seriedade do problema deveria ser suficiente para admitirmos até sociais-democratas que concordassem com a necessidade de frear o autoritarismo judiciário participando ao nosso lado. A dificuldade de entender isso demonstra uma falta de disposição por colocar a defesa dos princípios democráticos em primeiro plano", comenta.

A incapacidade de superar divergências em nome de pautas específicas, segundo ele, tem origem na própria forma como a democracia brasileira se desenvolveu. "O Brasil tem uma escassa tradição partidária. Nossos partidos são constantemente destruídos e remodelados na medida em que os regimes são alterados. Em contrapartida, temos uma forte tradição personalista e sebastianista. Esse terreno é propício para que lideranças carismáticas capturem as pautas e movimentos e se sobreponham a uma definição mais clara e sólida dos princípios e programas políticos", diz.

Para ele, o momento é grave o suficiente para colocar desavenças eleitorais de lado. "Infelizmente, no fim das contas, o próprio MBL também desistiu de participar, cedendo às tensões e divergências internas, o que considero profundamente equivocado e outra forma de não colocar o cenário nacional em primeiro plano", afirma.

Para o cientista político Paulo Kramer, a excessiva fragmentação interna é um fenômeno normal em movimentos políticos incipientes, como é o caso da nova direita no Brasil. "Se você olhar no nosso passado recente, até o final do século passado, a esquerda brasileira era também muito dividida. Antes você tinha aquela tradicional divisão dentro do comunismo entre stalinistas e trotskistas. Depois, outras clivagens surgiram. No governo João Goulart, havia uma discussão dentro da esquerda sobre se apoiavam um processo de reformas básicas, dentro da ordem constitucional, chamado de reformas base, ou se a esquerda deveria partir para uma posição mais ousada de acelerar o processo revolucionário", recorda.

A divisão da nova direita, destaca ele, faz parte da criação da identidade desse novo movimento político. "Talvez sejam as dores de crescimento do movimento. Primeiro, é necessário passar por um processo de autoidentificação. Até pouco tempo atrás, até 10, 20 anos atrás, poucas pessoas tinham coragem de se assumir como de direita."

Quanto ao foco das manifestações na figura de Deltan, Kramer enxerga isso como uma vantagem. "Quando você individualiza uma reivindicação, quando você dá um rosto para ela, fica mais fácil para as pessoas que não são tão politizadas assim aderirem à mobilização. É mais fácil a pessoa lutar por alguém que existe, por um rosto humano identificável, do que por ideias abstratas."

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