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O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará, em 23 de março, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) que pede a declaração de inconstitucionalidade de uma lei estadual da Bahia que restringe a publicidade, dirigida a crianças, de alimentos e bebidas que causem algum tipo de dano à saúde.
O argumento utilizado pela Abert na ADI 5631, impetrada em dezembro de 2016, é que compete privativamente à União, e não aos estados, legislar sobre publicidade. Além disso, a entidade defende que a lei viola princípios constitucionais como liberdade de expressão, direito à informação e livre concorrência.
Em janeiro de 2017, o relator da ação, ministro Edson Fachin, solicitou informações ao governo baiano e à Assembleia Legislativa do estado, além do parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Procuradoria Geral da República (PGR) sobre o caso. Tanto a AGU quanto a PGR manifestaram-se pela inconstitucionalidade da lei sob o argumento de usurpação à competência privativa da União.
Por outro lado, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), uma das entidades aceitas pelo STF como amicus curiae (cuja função é fornecer subsídios às decisões do tribunal com relação ao tema apreciado) no julgamento da ADI, entende que a lei está em conformidade com a Constituição Federal, pois tem a finalidade de proteger a saúde e a infância, além de tratar da relação de consumo.
Em sua manifestação, o Idec defendeu que a lei não trata de modo principal do aspecto da publicidade, mas tem como principal tema a regulamentação suplementar do ambiente escolar e a repressão da publicidade abusiva direcionada a crianças. O Idec também argumenta que a legislação trata da questão da saúde, já que pretende coibir o consumo de alimentos não saudáveis por crianças e adolescentes, e que a saúde, por sua vez, é assunto de competência legislativa concorrente entre os estados e a União.
O que diz a lei estadual sobre publicidade infantil
A Lei 13.582 foi promulgada em setembro de 2016 pelo deputado Marcelo Nilo – presidente da Assembleia Legislativa do estado da Bahia na época. A proposição proíbe propagandas relacionadas a alimentos e bebidas considerados pobres em nutrientes e com alto teor de açúcar, gorduras saturadas ou sódio entre 6h e 21h em rádio e TV e em qualquer horário nas escolas públicas e privadas. Mesmo sendo veiculadas dentro do horário permitido, as mensagens comerciais deverão vir acompanhadas de advertências públicas sobre prejuízos à saúde causados pela obesidade.
Em caso de descumprimento das restrições, o infrator estará sujeito a penalidades como multas, suspensão da veiculação da publicidade e imposição de contrapropaganda.
A lei também impede o uso de celebridades ou personagens infantis na comercialização de produtos alimentícios considerados de baixo teor nutritivo, bem como a inclusão de brindes promocionais, brinquedos ou itens colecionáveis associados à compra desses produtos.
Nova lei estadual alterou dispositivos da lei original
Pouco mais de dois anos após a promulgação da lei sobre publicidade infantil na Bahia, a Assembleia Legislativa do estado aprovou uma nova legislação alterando trechos da lei 13.582/2016. A proposta, promulgada em dezembro de 2018, revogou o trecho que cita a vedação à publicidade infantil em rádio e televisão entre 6h e 21h e em qualquer horário nas escolas públicas e privadas e alterou o artigo 1º, retirando a citação que trata de alimentos e bebidas considerados inadequados nutricionalmente.
O trecho que era “Fica proibida no Estado da Bahia a publicidade, dirigida a crianças, de alimentos e bebidas pobres em nutrientes e com alto teor de açúcar, gorduras saturadas ou sódio” passou a ser “Fica proibida, no Estado da Bahia, a comunicação mercadológica dirigida às crianças nos estabelecimentos de educação básica".
Quanto ao termo “comunicação mercadológica”, a lei de 2018 define: “Por comunicação mercadológica entende-se toda e qualquer atividade de comunicação comercial, inclusive publicidade, para a divulgação de produtos, serviços, marcas e empresas independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado”.
Graças a essas alterações, Pedro Hartung, coordenador do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, acredita que o STF irá declarar a extinção da ADI 5631 por perda do objeto. “Essa nova lei não fala mais sobre televisão e radiodifusão e, por isso, nem impacta mais a Abert [autora da ação]. Esses trechos não existem mais; a lei fala agora apenas de publicidade nas escolas”.
A Abert, no entanto, considera que a alteração da lei não foi substancial e, portanto, não houve perda de objeto. “A lei da Bahia, desde a sua concepção, é inconstitucional, e não à toa a sua redação foi alterada. Como a alteração não foi substancial, pois continua a tratar da publicidade comercial, cuja competência é privativa da União (e não do Estado), o vício de constitucionalidade ainda existe”, aponta Rodolfo Salema, gerente de assuntos legais e institucionais da Abert. “Além disso, a nova redação veda toda e qualquer publicidade, independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado para sua veiculação. Por esse motivo, entendemos que a ação não perdeu o objeto, e o STF deve apreciar o mérito”.
Juristas indicam constitucionalidade da lei questionada no STF, mas apresentam ressalvas quanto à nova legislação estadual
Na avaliação de Gustavo Aécio Barbosa Lopes, procurador-geral de São José dos Pinhais (PR) e especialista em direito civil e empresarial, a versão da lei promulgada em 2016 era constitucional. “Há um conflito de direitos fundamentais na análise constitucional. Você tem o artigo 220 da Constituição Federal que prevê como direito fundamental a comunicação, e o artigo 227 que trata da proteção integral e prioritária que se dá à criança. Nessa dimensão de conflito entre a proteção de diferentes direitos fundamentais, eles devem ser ponderados de acordo com o critério da proporcionalidade, com o intuito de averiguar qual direito pode ou deve ser restringido em prol de um bem maior”, declara o jurista. “De forma tangencial, a lei acaba atingindo um pouco da publicidade, mas não está vedando a publicidade. Por isso, entendo que há constitucionalidade”.
A advogada Fabiane Pinto, especialista em Compliance e Gestão de Riscos, Governança e Inovação, também aponta que a lei de 2016 seria constitucional. A jurista destaca que o tema central da questão é a saúde, cuja competência legislativa é concorrente entre os estados e a União, o que permite ao estado da Bahia regulamentar esse assunto. Fabiane cita ainda que é um direito básico do consumidor a proteção contra a publicidade abusiva, de acordo com o artigo 6º Código de Defesa do Consumidor (CDC), e também aponta o segundo parágrafo do artigo 37 do mesmo código, que define como abusiva aquela publicidade que seja “discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança”.
“Desse modo, não há como tratar dos direitos fundamentais intrínsecos à publicidade em rota de choque com os direitos fundamentais relacionados à proteção da criança”, diz a advogada.
Entretanto, diante da nova legislação aprovada em 2018, Gustavo Lopes pondera que as alterações feitas podem afrontar o direito à publicidade e endossa a possibilidade de não haver o julgamento da ADI por perda de objeto, já que a alteração muda o foco da discussão em torno da lei.
“Quanto à lei anterior, estávamos falando em conflitos entre direitos comunicacionais e direito à saúde, e a temática se concentrava em intervir e prevenir o quadro de obesidade infantil. A nova lei amplia a temática, que até então era uma questão própria de saúde pública. Agora está se proibindo toda e qualquer atividade de comunicação comercial mercadológica ao público infantil [nas escolas]”, afirma.
“Neste ponto, entende-se que a questão pode tomar novos rumos, inclusive porque a proibição de ‘toda de qualquer atividade de comunicação’ pode ofender ao preconizado pela Carta Magna em seu artigo 220, que assegura a livre manifestação do pensamento e à liberdade de informação jornalística, podendo o diploma legislativo ser objeto de nova discussão constitucional”, complementa Fabiane Pinto.
Publicidade infantil no Brasil
De acordo com o Idec, por ser um público vulnerável e persuadido com facilidade, as crianças são vistas pelas empresas como parte relevante do mercado. O instituto aponta que o artigo 37 do CDC define a publicidade direcionada ao público infantil como abusiva, já que se aproveita da deficiência de julgamento da criança.
O Instituto Alana – outra entidade aceita pelo STF como amicus curiae no julgamento da ADI – também cita o inciso IV do artigo 39 do CDC como limitador da publicidade infantil. O trecho em questão ressalta que é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”.
“A discussão sobre a publicidade dirigida ao público infantil (no Brasil, menores de 12 anos) começa com o entendimento de que crianças são indivíduos numa fase de desenvolvimento em que ainda não têm condições de responder à pressão que a comunicação comercial e a publicidade exercem sobre ela”, explica Hartung.
“O Conselho Federal de Psicologia tem um parecer específico sobre isso apontando que a criança até os oito anos não consegue distinguir entre um conteúdo de programação na televisão e publicidade. Ela assiste a um desenho infantil de um personagem e em seguida vê a propaganda de um brinquedo que passou no desenho. Nos canais de influenciadores digitais também, quando a publicidade é feita no meio dos conteúdos, a criança tem dificuldade em reconhecer. E com 12 anos de idade, ainda que ela entenda que se trata de uma propaganda, não entende o caráter persuasivo dessa comunicação”, aponta.
Para restringir os efeitos da publicidade infantil no Brasil, em 2014, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) aprovou a Resolução 163, que considera abusiva a prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço.
“Apesar de a legislação do Código do Consumidor datar de 1990, o que sempre se buscou foi a efetivação disso e a fiscalização pelas autoridades quanto a esse tipo de prática”, declara o coordenador do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana. Graças a essa ausência de fiscalização, diversos parlamentares têm apresentado projetos de lei em âmbito federal para dar mais força à regulação da publicidade infantil.
Uma das proposições mais antigas sobre o tema é o Projeto de Lei (PL) 4815/2009, que está em tramitação há 12 anos. O PL, de autoria do ex-deputado federal Dr. Nechar, proíbe a venda de brinquedos ou brindes acompanhados de lanches ou refeições de qualquer tipo. A esse projeto foram apensadas várias outras propostas que tratam do mesmo tema. Uma dessas é o PL 9.269/2017, do ex-deputado federal (e atual senador) Major Olímpio (PSL-SP), que acrescenta ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) dois dispositivos que tratam especificamente da “abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente”.
“O objetivo dessa discussão não é o fim da publicidade de um produto ou serviço; é apenas o seu redirecionamento para o público adequado. A pergunta que trazemos é: ‘é justo trazer a publicidade para um indivíduo que não consegue responder adequadamente a essa pressão?’. Essa publicidade deve ser direcionada aos pais e mães, verdadeiros responsáveis pela educação dos seus filhos, e não utilizar da vulnerabilidade infantil para vender um produto”, salienta Hartung.
Na avaliação da Abert, entretanto, a legislação brasileira vigente é clara no sentido de estabelecer que nem toda publicidade dirigida ao público infantil é ilegal, mas somente aquela que “se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança”.
“Por razões óbvias, é natural que esse tipo de publicidade requer alguns cuidados. Mas esses cuidados já estão atualmente previstos no Código de Defesa do Consumidor, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no CONAR (com regras de autorregulamentação), além de serem tomados por meio do poder familiar dos pais. O Brasil é um dos países mais regulados com relação à publicidade voltada à criança, e a experiência internacional caminha no sentido na regulação e não da proibição total”, observa Rodolfo Salema.