Qualquer ser humano está sujeito a ter falsas memórias, ou seja, acreditar que um evento falso, que não existiu, tenha efetivamente ocorrido. Na maioria das vezes, as pessoas não se dão conta disso por confundir coisas banais, que não têm tanta importância. Mas no mundo do crime, a falsa memória deve sempre ser vista com cautela durante as investigações, segundo a psicóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Lilian Milnitsky Stein, autora do livro Falsas Memórias: Fundamentos científicos, aplicações clínicas e jurídicas, a ser lançado em agosto pela editora Artmed.
Como a defesa do acusado do crime do Morro do Boi, Juarez Ferreira Pinto, está apoiada na psicologia do testemunho para dizer que a vítima, Monik Pegorari de Lima, está confusa, Lilian aceitou dar entrevista à Gazeta do Povo sem comentar diretamente o caso por não tê-lo acompanhado. Ela se resume a explicar o significado da falsa memória, assunto muito recente no Brasil (é estudado há cerca de dez anos). O único grupo de pesquisa que aborda este tema na América Latina é o do Rio Grande do Sul, do qual Lilian faz parte.
A psicóloga lembra que o relato de uma vítima sempre é confiável, desde que a forma de obtenção do testemunho tenha se baseado em técnicas científicas, ou seja, levando em consideração como a memória das pessoas funciona. Entre os critérios dessa técnica está a forma de compor um grupo de pessoas ou fotografias que passará pelo reconhecimento da vítima.
"Existe uma literatura de cerca de 30 anos no mundo que mostra como as coisas devem ser feitas. Colocar pessoas de biotipos diferentes na hora do reconhecimento, por exemplo, pode levar a vítima ou testemunha a reconhecer alguém falsamente. Não sei se este foi o caso do Morro do Boi, o ideal seria analisar se as técnicas foram apropriadas para dizer se houve ou não o falso testemunho", explica. Leia os principais trechos da entrevista.
Uma pessoa pode ter uma lembrança a respeito de uma coisa, como por exemplo de quem cometeu um crime, sem que isso tenha acontecido?
Sim, mesmo que ela não tenha passado por um evento tão grave, como um assalto ou uma agressão sexual. É o que chamamos de falsas memórias, o fato de as pessoas lembrarem de coisas que não aconteceram.
Então, a falsa memória é algo comum?
Isso acontece com todo mundo que é normal. As pessoas doentes, aliás, têm patologias de memória, por isso esse evento aparece nesse grupo com menos frequência. Isso faz parte do processo normal de funcionamento da nossa memória, esquecemos coisas e podemos lembrar de outras que não aconteceram.
Nos eventos emocionais isso acontece com mais frequência?
Não, é independente. Antes os estudiosos acreditavam que a emoção ajudava a diminuir as falsas memórias. Hoje, percebemos que mesmo nos acontecimentos negativos, desagradáveis, a pessoa tem falsa memória.
É possível uma vítima associar um evento de violência à primeira pessoa que ela considera parecida com o criminoso, mesmo não sendo ele?
Chamamos isso de sugestão da memória. Pense o seguinte: guarda-se na memória a imagem do assaltante, passa um tempo depois do crime e a vítima vê o retrato falado feito pela polícia. Esta foto do retrato falado pode interferir na memória verdadeira, pode confundir com o que efetivamente aconteceu. Agora, a vítima faz o reconhecimento do suspeito: ao invés de acessar a memória verdadeira aquela primeira, do assalto a vítima, sem se dar conta, acessa a memória errada. Isso não quer dizer que ela está mentindo, porque ela não percebe que esta memória se refere apenas a do retrato falado. A memória das pessoas é muito sugestionada, mesmo para os eventos mais graves.
Pode acontecer o contrário, de a pessoa acessar a memória verdadeira e reconhecer o criminoso corretamente?
Claro que sim. As duas coisas podem acontecer: o reconhecimento correto, pela memória verdadeira, ou o incorreto, pela falsa memória.
Mas, então, como é possível decidir um caso em que a única prova é a testemunhal?
Se analisa os procedimentos adotados para obtenção desse testemunho. Trata-se de uma análise técnica a partir desse conhecimento científico advindo da psicologia do testemunho. Existem pessoas especializadas que podem fazer essa análise. Isso vale tanto para o reconhecimento pessoal como para a coleta de depoimentos.
O ser humano é capaz de detalhar as características físicas de uma pessoa que viu rapidamente para constituir um retrato falado?
Existem muitos estudos sobre isso. Uma coisa é reconhecer uma pessoa que já viu. Outra coisa é descrever essa pessoa. Mesmo para um colega de trabalho que você vê todos os dias, me responda: você é capaz de descrevê-lo a ponto de uma pessoa, que não o conhece, ser capaz de reconhecê-lo pelas suas descrições? Uma coisa é falar se a pessoa é morena, loira, alta ou baixa. Outra, bem diferente, é narrar as características da face. Por isso digo que é preciso observar a forma como é obtido o retrato falado. Existe uma técnica especial para se entrevistar uma vitima e isso, infelizmente, ainda não chegou ao Brasil.
Como são estas técnicas?
Elas ajudam a pessoa a fazer a descrição sem a indução ao erro.
De um modo geral, a senhora acha complicado a polícia deixar a solução de um crime apenas pelo reconhecimento da vítima?
É difícil responder essa pergunta. Trabalho também com abuso sexual de crianças e, às vezes, você só tem a palavra da vítima. Você fica em um dilema que é não responsabilizar as pessoas que estão envolvidas nesse crime e também julgar alguém injustamente. Nosso trabalho existe para poder melhorar as condições de obtenção desse testemunho. Infelizmente as técnicas adequadas ainda são incipientes no Brasil.
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