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Guerra do Paraguai

Quando a tropa era formada atrás das grades

No alto: militares que participaram da Guerra do Paraguai; no meio: acampamento brasileiro em Lambaré, no Paraguai; acima: brasileiros ouvem missa no país vizinho | Divulgação/Biblioteca Nacional
No alto: militares que participaram da Guerra do Paraguai; no meio: acampamento brasileiro em Lambaré, no Paraguai; acima: brasileiros ouvem missa no país vizinho (Foto: Divulgação/Biblioteca Nacional)

Um exército que precisava ser formado às pressas só conseguiria recrutar homens se o governo ofertasse algo atraente em troca. O Brasil, durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), o maior conflito armado na história da América do Sul, chegou a perdoar presos homicidas que aceitassem lutar pela nação. A proposta foi tão tentadora que um exército então fadado ao fracasso logo aumentou em número e força. Quem já havia tirado a vida de alguém recebia a "licença para matar novamente" se cumprisse três requisitos: não tivesse matado alguém da família, demonstrasse uma boa conduta dentro da cadeia e ainda tivesse cumprido pelo menos um terço da pena. Não demorou para que centenas de condenados fizessem pedidos de alistamento. Não há um número exato de quantos foram recrutados, até porque os ofícios eram expedidos individualmente, mas a quantia certamente foi suficiente para dar um novo fôlego ao Exército brasileiro. O Brasil entrou na guerra, em 1864, com 16 mil homens contra 50 mil paraguaios; no final do conflito, tinha uma legião de 150 mil.

Também houve casos de presos que chegaram a ser selecionados, mas que não foram para a guerra. "As autoridades locais, das províncias, não fiscalizavam direito o perfil dos homicidas e, ao chegar no Rio de Janeiro [de onde partiam para a guerra], eram mandados de volta porque eram, por exemplo, matricidas", explica a historiadora Maria Regina Santos de Souza, doutoranda da Universidade Federal de Pernambuco.

Além de homicidas, Maria Regina lembra que foram recrutados presos condenados à galé (pena de trabalhos forçados em embarcações, geralmente aplicada a escravos e ex-escravos que matavam ou feriam alguém gravemente). O historiador Francisco Doratioto, que pesquisa sobre a Guerra do Paraguai, comenta que o militar Duque de Caxias chegou a registrar, na época, que os escravos não tinham força de vontade para combater. "Extrapolo dizendo que o mesmo valeu para os homicidas. Mas acredito que isso não era levado em conta em uma trincheira. Quando todos estão sob ameaça, o desempenho é algo que fica em segundo plano", afirma.

Resistência

A falta de interesse da população em lutar em uma guerra como a travada contra o Paraguai tem explicações bastante razoáveis. "Quando alguém falava que não queria ir, não era por covardia", diz Doratioto. O clima do Pa­­raguai, extremamente quente e úmido em uma época e bastante frio em outra, foi um fator que dizimou boa parte dos soldados, que ficavam facilmente doentes.

Logo que a guerra começou, havia um interesse da população em lutar pelo país, mas já no ano seguinte as pessoas começaram a ver que as vantagens eram mínimas, pois muitas famílias tiveram perdas e outros voltaram mutilados. Não havia previsão para o confronto terminar e os que eram enviados ficavam um grande período longe das famílias. "A primeira decisão do governo tomada para recrutar mais homens foi baixar o Decreto dos Voluntários da Pátria n.° 3.371, que oferecia incentivos à população civil para quem se alistasse", diz Maria Regina. Entre os benefícios estavam terra, dinheiro e pensão nos casos de invalidez ou morte.

Inicialmente, a população também tinha resistência em fazer parte do exército porque ele era formado por membros de famílias mais pobres, pessoas tidas como transgressoras, e porque o Exército costumava castigar seus recrutas. "Mas logo que o decreto foi baixado [em 7 de janeiro de 1865], muitos aceitaram se alistar na esperança de ganhar dinheiro. A primeira parte do valor era paga no ato do alistamento e a segunda depois que a pessoa voltava da guerra", conta Maria Regina. A descrença aumentou quando o governo começou a atrasar os pagamentos e muitos militares mutilados não receberam pensão. Chamar os homicidas, então, foi uma solução encontrada para suprir as forças.

Existiam requisitos para a seleção dos homicidas justamente porque o Império temia uma reviravolta na sociedade. "Ima­­gine que se qualquer um que matasse pudesse, depois, se livrar da pena porque iria para a guerra. As pessoas poderiam começar a matar mais e as pessoas poderiam ficar inconformadas com o descaso", diz Maria Regina. Por isso, ter cumprido parte da pena era essencial. Assim, teriam consciência de que matar só não seria considerado crime naquela situação belicosa.

Se do lado brasileiro foram recrutados homicidas, do lado paraguaio as crianças foram convocadas. O líder Solano López estava disposto a sacrificar o país e a população para vencer os aliados Brasil, Argentina e Uruguai, e não poupou nem a população infantil. "Muitas [crianças] foram para o combate usando barbas postiças para, de longe, parecerem mais velhas. Elas tinham 11, 12 anos", afirma Doratioto.

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