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Entrevista

“Quando agimos em grupo, podemos extravasar nossas ‘verdades’”

Autor do livro Raízes da Intolerância, que será lançado em novembro pela editora EdUfscar, o professor da Universidade Federal de São Carlos e psicanalista João Angelo Fantini vira do avesso o senso comum. Com base na teoria psicanalítica, afirma que reservamos nossas emoções mais virulentas não aos extremamente diferentes, mas aos que mais nos lembram e nos ameaçam por alguma semelhança. Confira a seguir uma síntese da entrevista, concedida por e-mail à Agência RBS:

O que explicaria a aparente exacerbação da intolerância na contemporaneidade?

A intolerância é praticada sob a crença de que se faz isso a partir de uma ‘verdade’. Seja nas guerras (a Guerra Justa dos romanos – e, por que não, dos americanos e fundamentalistas, que colocam Deus do "nosso" lado), ou entre torcidas, vizinhos, casais. O que a psicanálise oferece para além das razões históricas para pensar a intolerância é uma fórmula inversa: nosso ódio ao outro não é fruto do fato deste outro ser "menos", mas de ter alguma coisa que o sujeito intolerante acredita que o outro possui a mais! Como a crença na superpotência sexual dos negros. Um exemplo no caso do racismo: se estudamos as execuções da Ku Klux Klan nos Estados Unidos, a maioria era justificada como "crimes de natureza sexual", isto é, os mais íntimos desejos reprimidos, sádicos e masoquistas foram exteriorizados e projetados sobre o negro (lembrando que os homens eram enforcados e muitas das mulheres estupradas por esse grupo). Voltando ao goleiro e à torcedora: quando a torcida atua intolerantemente, ela está com a "verdade" (pois mais irracional que seja) a seu lado; quando os alvos da intolerância perseguem a torcedora, a "verdade" muda de lado. O que nunca muda é que, quando agimos em grupo, podemos extravasar nossas "verdades" narcísicas mais íntimas (sou melhor que o outro, tenho origem melhor) de forma impune.

O senhor já escreveu que a ascensão da nova classe média é um dos fatores que dão ensejo a "um novo tipo de intolerância em relação às diferenças étnicas e sociais". Como isso acontece?

Penso a questão a partir de conceitos extremamente arraigados, como a "cordialidade brasileira", a miscigenação, o "jeitinho brasileiro", entre outros. O brasileiro pobre, ignorante ou desonesto é sempre um "outro". No Brasil, um "brasileiro branco" é alguém socialmente aceito como "branco", independentemente da ascendência e especialmente em razão de sua situação econômica. Quando mestiços ou pardos se tornam mais ricos, começam a ser percebidos crescentemente como ‘brancos’. Mas apenas pardos quando ficam mais ricos podem "tornar-se brancos", enquanto aqueles com fenótipo de pele escura sempre são percebidas como negros, não importa o quão ricos fiquem.

No livro Raízes da Intolerância, o senhor afirma que as mais estranhas manifestações de intolerância são reservadas a pessoas "estranhas" que tentam agir e falar como aqueles que se julgam "cidadãos natos". Partindo desse princípio, o que os casos recentes de intolerância revelam sobre o Brasil?

Há muito tempo, o psicanalista francês Jacques Lacan afirmou "O maior desejo do ser humano é ser desejado". Esta razão que move montanhas, pessoas e um mundo de dinheiro é o pano de fundo nos processos de ascensão social. Não basta ganhar dinheiro e ir para uma ilha. Se você melhora de vida, é preciso sempre que alguém afirme isso a você. Para isso, este outro precisa reconhecê-lo como `parte do grupo’. Aí começam os problemas. Se você fica rico em Londres, possivelmente vai se sentir forçado a introjetar hábitos ingleses para poder frequentar o lugar dos ricos ingleses, talvez até imitar o sotaque deles. Mas que efeito isso produzirá em um "inglês legítimo"? Em escala doméstica, estamos vivendo essa questão: essa classe média ascendente é o Brasil? Ou os poucos por cento que usavam o aeroporto e os shoppings é que são? Tenho ouvido muitas pessoas passarem a enumerar suas "origens europeias", como saída para o impasse.

Como equacionar isso?

A parte mais difícil é não cair em dualismos, nesta espécie de Fla-Flu (ou Gre-Nal) que impera em qualquer questão complexa. Não podemos repetir o exemplo que encontramos no horário eleitoral, onde cada um tem uma "verdade histórica" a defender. O resultado disso nunca é progresso material ou psíquico, mas guerra.

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