Nas décadas de 1940 e 1950, era bem fácil provocar súbito mal-estar em editores e barões da imprensa. Bastava lhes sugerir que fizessem uma “reforma gráfica” em seus jornais, libertando-os da diagramação massuda, de digestão difícil até para o mais faminto dos leitores.
A resistência canina em mudar vinha de uma razão “quase folclórica”. Por tradição, acreditava-se que os jornais tinham de ter um nó de escoteiro com o cotidiano do leitor comum. Fariam sucesso se chegassem de manhãzinha, junto com o leite e o pão. Se os três produtos fossem devorados juntos, melhor. O periódico teria conquistado a mais inabalável das muralhas – a rotina.
Veja o que muda na Gazeta do Povo a partir desta terça-feira (1º)
De modo que qualquer ruído que colocasse essa intimidade a perigo deveria ser tratado como um espinho no pé. Isso incluía jamais mexer no logotipo e nunca retirar um fio usado embaixo de uma coluna – mesmo que estivesse ali por acaso –, sob perigo de ser processado por injúria, calúnia e difamação.
Acreditava-se que o consumidor abandonaria um jornal que o traísse, como se uma mudança gráfica equivalesse ao pão chegar murcho e o leite, aguado. A alteração da forma tinha de ser tão discreta que no máximo duas pessoas na redação deveriam percebê-la. Passou disso, que tocassem as sirenes.
Tal crença era cimentada em um sem número de episódios pitorescos, requentados nos cafezinhos. Fazia parte da hagiografia da imprensa a história do dono do jornal que por pelo menos três décadas guardou um projeto gráfico na gaveta. De vez em quando abria, olhava, achava bonito, mas se recolhia ao silêncio, costurando o segredo na boca do sapo. Convenceu-se do contrário quando estava perto de morrer.
Havia, é claro, provas em contrário. Em 1951, o jornalista Samuel Wainer chamou o designer paraguaio Andrés Guevara [e, para outras artes, o cartunista ítalo-uruguaio Lanfranco Rossi, o Lan] para desenhar um jornal diferente de tudo o que havia na praça, moderno como o Brasil queria ser naqueles dias de JK no poder. O Última Hora mostrava que era possível virar as costas para os jornalões de intermináveis nove colunas, sem respiros, quase uma tortura medieval.
Menos de uma década depois, seria a vez do Jornal do Brasil trocar de roupa, esse sim um veículo mais tradicional que as queijadinhas da Confeitaria Colombo. Em 1960, perto de completar 70 anos o JB convocou o multiartista Reynaldo Jardim e o escultor Amílcar de Castro para implantar os brancos e as colunas falsas, entre outras “sacadas” que nunca mais deixariam de ser reproduzidas pela imprensa brasileira.
Por aqui
O jornal Diário do Paraná – do grupo Diários Associados – seguiu a corrente. O suplemento Letras & Artes, editado no DP pelo hoje cineasta Sylvio Back, colocou o estado na raia em que nadavam o JB, o Diário Carioca, Correio da Manhã e outros periódicos dispostos a exorcizar as superstições que sempre deixavam as reformas gráficas “para depois”. Ainda que não com a ligeireza de um iê-iê-iê, depois dessa quebra de tabu, todas as vezes que um jornal precisou de oxigênio recorreu aos préstimos dos bons designers, deixando o pão para os padeiros e o leite para os leiteiros.
Por um bom tempo, a Gazeta do Povo – curvada pelo peso de ter sido fundada em 1919, quando as mulheres usavam camisolas para tomar banho – seguiu as convenções da Genebra do jornalismo. “Não e não”. Mudanças na diagramação ocorriam, mas eram visíveis apenas com o uso de lupas. Até a década de 1930 – a exemplo da maioria dos seus concorrentes – parecia um livro impresso às pressas, feio, mas obediente às regras do chamado publicismo: um jornal existia para defender causas, alguns tons acima, de preferência. A causa da Gazeta era o paranismo, de modo que todo o resto não passava de perfumaria – inclusive a diagramação, já praticada com requintes em magazines comoa Illustração Paranaense (1927). Quem quisesse desenhos de moda, fotografias de banhos de mar em Caiobá e frivolidades, que folheassem revistas para moças.
Não permaneceu sempre assim, a ferro, a fogo e, diga-se, a chumbo quente, que escorria das placas usadas na infernal linotipia, obrigando os impressores intoxicados a se embriagarem de hectolitros de leite vindo das chácaras do Xaxim. Nas décadas de 1940 e 1950, por exemplo, uma “Gazeta expressionista”, debaixo do impacto da Segunda Grande Guerra, esbanjava títulos bem entintados, mas não havia diagramação que segurasse diante de um maquinário com data de validade vencida, batendo pino como uma Maria Fumaça.
A rotoplana da marca Müller – uma espécie de carimbo gigante capaz de imprimir edições de no máximo oito páginas – empacava nos dias de frio, ou seja, quase sempre. Era comum o leitor levar para casa uma edição lavada, como se a página tivesse ficado de molho no anil. E não havia muita possibilidade de mudança nas próximas viradas da Terra em torno de seu eixo. Naqueles tempos de incontáveis zeros agregados ao preço da carne, reformas em parques gráficos não ocorriam nem no futurista desenho animado The Jetsons, que dirá no combalido jornal que funcionava na Praça Carlos Gomes.
A “sisuda”
A Gazeta do Povo foi comprada de um de seus fundadores – Oscar De Plácido e Silva – em abril de 1962, pelos advogados Francisco Cunha Pereira e Edmundo Lemanski. As mudanças apareceram nas primeiras semanas: editoriais menos ranhetas, títulos pouco dados a cultuar o fracasso e fumaças do que seriam as campanhas cívicas – que se multiplicariam em número e tamanho ao longo do tempo. Quanto às mudanças gráficas, limitaram-se ao aparecimento de colunas, como “Gente Moça”, de Marcos Vinícius, e as críticas de cinema de José Luiz Kaiser. Some-se as fotos de visita à redação e um maior número de enquetes, feitas com populares, ali na Osório, de modo a quebrar a aparência de tijolaço da Gazeta. Nem o católico A voz do Paraná, dos primeiros tempos, conseguia ser tão sisudo.
O jornal padecia de limites técnicos crônicos – não amenizados nem com a substituição da germânica rotoplana Müller por uma charmosa impressora francesa, Marinoni, oriunda do Diário da Tarde, jornal comprado pela Gazeta do Povo em 1963. Pesquisa feita pela jornalista e historiadora Fernanda Leitóles, em 2008, para o livro Todo o dia nunca é igual, lançado por ocasião dos 90 anos da “Gazetona”, apurou que novas aquisições para a sala de impressão seguiram ditando mudanças - no ricocheteio da régua de paica e nos diagramas quadriculados de verde. O objetivo, contudo, era ampliar a tiragens. O que de fato se deu.
Em 1969, uma rotativa off-set Goss fez a tiragem saltar de 12,5 mil exemplares por hora para 50 mil exemplares por hora. Um ano depois, foi a vez do advento das fotos coloridas – um chamariz em tempos de meias Lurex. Vieram tímidas, ainda que onipresentes nas capas de domingo, com cara de cartão-postal; e no Caderno de Automóvel, até se imporem nas primeiras e últimas páginas das principais editorias.
Foi o começo de uma nova história. No chamado período de industrialização e profissionalização da imprensa brasileira, a década de 1970, a Gazeta – à semelhança dos demais jornais médios e grandes do país – seguiu renovando seu parque gráfico, o impactava diretamente o desenho das páginas. Mas a parafernália, melhor a cada ano, provocava uma miragem.
Regra do jogo
“Por que esse jornal não se parece com a cidade”, perguntou o espanhol Toni Piquet, consultor da Universidade de Navarra, ao conhecer Curitiba em 1997. Ele e sua equipe desembarcaram por aqui para iniciar uma longa pesquisa sobre as práticas editoriais da Gazeta do Povo. Não vinham passar a mão na cabeça de ninguém – muito menos dos diagramadores. Seis meses depois, fizeram um corte na carne: além de mexer no funcionamento da redação, viraram do avesso o desenho das páginas. Provocou ira, mas nada que impedisse o novo projeto gráfico e editorial de começar a circular em 15 de fevereiro de 1998.
Pode-se dizer que nesse dia a Gazeta do Povo superou o estigma do projeto gráfico guardado na gaveta. Arrancar fios virou regra do jogo. Houve uma reforma, de afogadilho. feita no sufoco, em meio à crise do país, em 2002. Nasceu para fazer caber mais notícia em menos espaço. Doeu. Em 2008, outro projeto, desta vez sem os préstimos da Universidade de Navarra. A equipe de jornalistas e designers da casa dissecou informações sobre o público alvo, virou do avesso as rotinas e moldou o barro das artes gráficas para criar um novo projeto – assinado pelos designers Ricardo Humberto, Marcos Tavares e Acir Nadolny.
Não houve bonança – em 2010, outro projeto. Até ribombar no que começou em 1.º dezembro de 2015 – radical ao assumir o formato berliner. Somando tudo, foram cinco mudanças em 17 anos – esses anos tão velozes e furiosos, que só podem ser comparados à era de Gutenberg, aquela que brindou a humanidade com o melhor dos vícios e a maior das virtudes – a leitura de jornal. Que assim permaneça.
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