Efeito vinculante
Respeito pode valer promoção
Que as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que têm efeito vinculante devem ser respeitadas, ninguém discorda. A polêmica está nas decisões que não têm efeito vinculante. A Resolução nº 106 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelece critérios de promoção dos magistrados, prevê que os juízes serão avaliados, entre outros quesitos, pelo respeito às súmulas do STF e dos tribunais superiores. A resolução não especifica se só serão consideradas as súmulas vinculantes.
"A Resolução 106 dá a entender que, para ser promovido, o magistrado deve observar e aplicar toda a jurisprudência sumulada e não só a vinculante", diz o desembargador Jorge Vargas de Oliveira. "Isso fere o princípio da independência do juiz. O juiz não pode ser punido por ter um raciocínio tão desenvolvido a ponto de enfrentar uma súmula do STF e mostrar o equívoco. Esse juiz mereceria ser elogiado e não punido". Segundo Oliveira, essa liberdade ajuda a arejar a jurisprudência e fazer com os tribunais superiores revejam seus posicionamentos.
Já para o professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná Egon Bockmann Moreira, a jurisprudência deveria ser observada independentemente de haver efeito vinculante. "Os juízes gostam de ser criativos e ter uma compreensão direta da Constituição e creem sempre que sua decisão é a melhor. Melhor ou pior, gostando ou não, cabe aos tribunais superiores uniformizar a jurisprudência. Se os tribunais superiores não forem respeitados, é melhor fechá-los."
Moreira argumenta que decisões contrárias à jurisprudência geram esforços e custos desnecessários. "Os tribunais superiores têm o papel de harmonizar a jurisprudência. Evita-se a insegurança jurídica", opina. Para Oliveira, porém, "a segurança jurídica não pode se sobrepor à evolução do Direito." "Vivemos em uma sociedade dinâmica", diz.
O caso do juiz que anulou um contrato de união estável firmado por dois homens levantou uma questão em todo o Brasil: pode um magistrado decidir de forma contrária à suprema corte do país? Em maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu como entidade familiar a união estável entre pessoas do mesmo sexo. O juiz Jerônimo Pedro Villas Boas, titular da 1.ª Vara da Fazenda Pública Municipal e de Registros Públicos de Goiânia, porém, ignorou a decisão e, na semana passada, anulou a união estável de Liorcino Mendes e Odílio Torres. Por mais estranho que possa parecer, no Direito brasileiro nem todas as decisões do STF vinculam os magistrados, o que significa dizer que os juízes não são obrigados a seguir toda e qualquer tipo de decisão da suprema corte. Os magistrados brasileiros só ficam restritos ao entendimento adotado pelo STF quando a decisão tomada tenha efeito vinculante. "Se não houver efeito vinculante pode divergir, se houver efeito vinculante não pode", explica o doutor em Direito pela Universidade Mackenzie Ives Gandra Martins.
O efeito vinculante, por sua vez, só ocorre quando o STF edita a chamada súmula vinculante, depois de reiteradas decisões no mesmo sentido e sobre o mesmo tema, ou quando faz o chamado controle concentrado de constitucionalidade, exercendo seu papel de guardião da Constituição Federal. O controle concentrado de constitucionalidade ocorre por meio de ações específicas: ação direta de inconstitucionalidade (Adin), ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).
Nessas ações não se coloca em jogo o direito específico de "A" ou "B", mas de toda a coletividade. É o momento em que o Supremo diz se determinada lei ou ato normativo é constitucional ou não e qual interpretação deve ser levada em conta. Por isso, diz-se que o efeito dessa decisão é vinculante e a eficácia é erga omnes, ou seja, "vale para todos". O STF pode ainda, em outros casos específicos, considerar que há repercussão geral e resolver dar efeito vinculante à sua decisão.
X da questão
A decisão do STF de equiparar os direitos de casais de pessoas do mesmo sexo aos de casais de heterossexuais ocorreu justamente em um julgamento conjunto da Adin 4277 e da ADPF 132. Ou seja, a decisão sobre o assunto se revestiu de efeito vinculante e não poderia ser desrespeitada por nenhum magistrado brasileiro. É por isso que, segundo os especialistas, o juiz Villas Boas, por mais que não concordasse com a decisão do Supremo, jamais poderia ter anulado a união estável de Liorcino Mendes e Odílio Torres.
Esse desrespeito, porém, não é tão incomum, como assevera a advogada especialista em direito homoafetivo Chyntia Barcellos, que representa o casal. "Por isso mesmo, a própria Constituição prevê o instrumento da Reclamação Direta ao Supremo", diz. Segundo ela, a Reclamação ao Supremo foi uma das primeiras medidas tomadas após a anulação da união feita pelo juiz goiano. Embora a corregedoria do Tribunal de Justiça de Goiás tenha anulado a decisão de Villas Boas, o juiz recorreu e não se sabe o que poderá acontecer até que seja julgada a Reclamação no STF.
Esse desrespeito, de acordo com o professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Egon Bockmann Moreira, revela um problema institucional grave. "Ao decidir contra uma decisão do STF com efeito vinculante, o magistrado está dizendo aos seus jurisdicionados que eles não precisam respeitar as decisões judiciais, já que ele mesmo não respeita a decisão do tribunal superior."
Gandra lembra que, quando há efeito vinculante, a opinião pessoal do magistrado não pode prevalecer. "Como professor, eu acho que o STF extrapolou suas atribuições, legislou e errou porque a Constituição considera explicitamente que a união estável acontece entre homem e mulher. Mas, se eu fosse magistrado, teria de decidir conforme o entendimento do Supremo", afirma. "Não necessariamente deve-se concordar, mas decisão com efeito vinculante tem de ser respeitada", complementa o presidente da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados de São Paulo (OAB-SP), Dircêo Torrecillas Ramos, outro jurista que também sustenta que o STF errou.
Justiça estuda punição
Dois dias depois de o juiz Jerônimo Pedro Villas Boas, da 1.ª Vara da Fazenda Pública Municipal e de Registros Públicos de Goiânia, anular a união estável de Liorcino Mendes e Odílio Torres, a desembargadora-corregedora do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO), Beatriz Figueiredo Franco, revogou a decisão do magistrado. Villas Boas recorreu da decisão. Segundo a assessoria do TJ-GO, a corregedoria do tribunal estuda se haverá punição a Villas Boas. Juiz há 20 anos, Villas Boas é vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros e pastor da Igreja Assembleia de Deus.
O casal Liorcino Mendes e Odílio Torres fez uma reclamação do juiz ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no site da instituição. A defesa do casal também entrou com uma Reclamação contra Villas Boas no Supremo Tribunal Federal (STF). O objetivo é reverter a decisão do juiz, mesmo que o recurso dele no TJ-GO seja aceito. A Reclamação ficará registrada no histórico funcional do juiz e será encaminhada aos órgãos disciplinares do Judiciário.
A defesa também estuda entrar com um pedido de indenização contra Villas Boas, já que teria sido dele a iniciativa de dar publicidade ao caso. "Como é caso de Direito de Família, há segredo de justiça", explica a advogada do casal, Chyntia Barcellos. A Ordem dos Advogados do Brasil de Goiás apresentará uma reclamação contra o juiz na Comissão de Direitos Homoafetivos do Ministério da Justiça. A reportagem tentou contato com Villas Boas, mas não houve retorno.
Casamento
Enquanto a pendenga jurídica não se resolve, Liorcino Mendes e Odílio Torres firmaram outro contrato de união estável, desta vez no Rio de Janeiro. A cerimônia se transformou em um protesto coletivo: 43 casais homossexuais firmaram compromisso em cartório na mesma cerimônia. Em outros cantos do país, a briga já não é mais para assegurar a união estável gay. A legislação brasileira diz que deve ser facilitada a conversão da união estável em casamento. E isso já começa a acontecer.
Dois homens que vivem em Jacareí (SP) conseguiram converter sua união estável em casamento civil. Segundo a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), foi o primeiro casal gay a ter o casamento reconhecido no Brasil. No Distrito Federal, duas mulheres também conseguiram converter a união estável em casamento. Em sua decisão, a juíza Júnia de Souza Antunes, da 4.ª Vara de Família do Distrito Federal, afirmou que a decisão do Supremo Tribunal Federal não deixou espaço para decidir de outra maneira. (TC, com agências)
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