Moradores de Doutor Ulysses sofrem com os rigores do lamaçal no verão chuvoso e com as nuvens de poeira na secura do inverno na PR-092| Foto: Henry Milléo/ Gazeta do Povo

Transtorno

Não há carro que resista aos solavancos e buracos da rodovia

O agricultor aposentado João Gabriel dos Santos, 68 anos, quebrou seu Gol 1982 na estrada que leva à terra esquecida. Fim de tarde, a família seguia de Cerro Azul para Doutor Ulysses quando os buracos na estrada de chão cobraram o preço de quem precisa passar pelo único acesso à cidade. Os solavancos soltaram peças da bateria e do carburador. Ao lado do sobrinho Pedro da Silva, 31 anos, João e outras quatro pessoas da família se puseram desolados ao redor do carro. Tardou até aparecer alguém disposto a prestar socorro. Não foi o único apuro.

Ano passado, contratou um carro em Almirante Tamandaré para levá-lo com a esposa, a cunhada e três crianças até Cerro Azul. Pagou R$ 15 por cabeça, adiantados. Um deslizamento bloqueou a passagem e o motorista simplesmente largou-os na estrada. Tiveram de caminhar 20 quilômetros até Cerro Azul, revezando o filho pequeno de um colo a outro. Na última quarta-feira, era ele quem dirigia o carro do tio ao sentir o solavanco que interrompeu a viagem. "Nem carro novo aguenta tanto buraco, imagina esse."

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Economia afetada

Acesso ruim afasta investidores e limita geração de emprego

A dificuldade para ir e vir afeta a economia de Doutor Ulysses, centrada na agropecuária e na extração de madeira. "Quem vai colocar um caminhão de meio milhão de reais numa estrada dessas?", diz o prefeito Josiel do Carmo dos Santos (PR). Em 2006, a cidade perdeu uma madeireira e 150 empregos diretos. A firma sofreu com a desvalorização do real e não suportou as constantes quebras de caminhões na estrada. As restrições de acesso criam uma reação em cadeia: afugenta indústrias, limita empregos, reduz a renda per capita, gera menos impostos.

Sem agência bancária devido à pouca circulação de dinheiro, o posto de atendimento do Bradesco fazia a prestação diária na lotérica. Sobrecarregado, o dono, Rildo Soares Fagundes, acabou fechando as portas há quatro meses. Ele integra um grupo de primos que em 2010 venceu licitação da Caixa Econômica para abrir 70 lotéricas em seis estados. Das cinco no Paraná, venderam quatro. A de Doutor Ulysses encalhou. "Não foi escolha, não", diz Rildo sobre ficar na cidade, onde também abriu um mercadinho. Ele espera reabrir a lotérica em dois meses, mas só para receber jogos e contas pequenas.

Antes do asfalto, técnicos do DER fazem medição topográfica
O Gol da família Santos quebrou na estrada:

A sorte nunca fez bom par com Doutor Ulysses. Na cidade dos piores indicadores sociais e econômicos do Paraná, nem a chance de arriscar melhor ventura na Mega-Sena os 5.734 moradores têm mais. A única lotérica fechou as portas há quatro meses, um dos tantos reflexos impostos pelo isolamento e pela segregação da cidade desde sempre. Longe de tudo, quase pra lá do fim do mundo, Doutor Ulysses cobra um preço alto de quem vive ali. Alguns poucos chegaram por escolha própria; a maioria por uma peça do destino.

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A sina do lugar teve início há um século, quando João Alves de Souza se estabeleceu na vastidão de terra com a grande prole para criar porcos e cultivar erva-mate. Na divisão das terras entre os filhos, perdeu dois terços para o advogado. O que restou foi batizado de Vila Branca, uma ironia carregada de preconceito para distinguir as terras dos brancos e dos negros, nesse caso a família de Souza. Promovido a município em 1992, o lugar ganhou nome e sobrenome de político ilustre, mas o isolamento continuou a impor restrições.

Até princípios dos anos 1970, a ligação com Cerro Azul, o município-mãe, não passava de uma picada aberta nas escarpas da mata atlântica. O percurso de 50 quilômetros tinha de ser vencido no lombo de cavalos ou em carros-de-boi. Serviços de patrolagem deram uma melhor aparência à estrada de chão, mas nada que pusesse fim aos rigores do lamaçal no verão chuvoso ou às nuvens de poeira na secura do inverno. E as curvas sinuosas, que fazem da viagem um zigue-zague nauseante, só não são piores do que os buracos. E como há buracos.

Acostumados a promessas não cumpridas, os ulyssenses reagiram entre entusiasmo e ceticismo ao anúncio do governo do estado de que irá pavimentar o trecho até Cerro Azul. A medição topográfica feita pelo Departamento de Estradas de Rodagem (DER) segue adiantada, mas asfalto pronto e tinindo só mesmo em 2014 – ou um pouco mais. Doutor Ulysses será uma das últimas cidades do Paraná a ter sua principal via de acesso pavimentada, junto com Guaraqueçaba (Litoral), Mato Rico e Coronel Domingos Soares (Centro-Sul). Antes tarde do que nunca.

Embora Doutor Ulysses faça parte da Região Metro­­­politana de Curitiba, os reflexos do isolamento aparecem no cotidiano dos moradores. A cidade tem o pior Índice Ipardes de Desempenho Municipal, a partir de dados de emprego, renda, produção agropecuária, educação e saúde (com referência de 2008). Também tem o segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Paraná, atrás apenas de Ortigueira.

Asfalto vai atrair mais investimentos, prevê prefeito

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O isolamento imposto pelas dificuldades de acesso faz de Doutor Ulysses uma cidade dependente dos recursos estaduais e federais. O Fundo de Participação dos Municípios responde por 60% do orçamento anual de R$ 10 milhões, cabendo 39% ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). A receita própria não chega a 1%. Sem emprego, grande parte dos moradores trabalha nas cidades vizinhas, onde também compram alimentos, móveis, roupas e medicamentos. A maior beneficiada é Cerro Azul, que passou a se desenvolver depois de receber o asfalto até Rio Branco do Sul, há seis anos.

O prefeito Josiel do Carmo dos Santos (PR) acredita que o asfalto será o ponto de virada de Doutor Ulysses. "Hoje não adianta dar isenção de impostos. Nenhuma indústria quer se instalar aqui. Não tem como escoar a produção", lamenta. Em média, 15 caminhões-julieta trafegam por dia nesse trecho da PR-092, cada um com 75 toneladas. "Nem asfalto aguenta, imagina uma estrada de terra", diz o prefeito. "O asfalto vai abrir as portas para a indústria", prevê.

A pavimentação vai ajudar também os doentes de Doutor Ulysses. Todos os dias, de segunda a sexta-feira, um micro-ônibus enfrenta logo de madrugada os buracos da estrada para distribuir pacientes da cidade nos hospitais de Curitiba.

A viagem de 130 quilômetros leva quatro horas, por causa das curvas sinuosas e dos buracos da estrada de terra no trecho até Cerro Azul. No retorno, já noite, o micro-ônibus marca 500 quilômetros a mais no hodômetro.

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