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Sempre fui um otimista, talvez mais por inclinação genética que por tirocínio, mas não importa: a ideia de que a vida e o mundo vêm melhorando nas últimas décadas me parece óbvia. Mas meu otimismo atávico está sofrendo algumas fissuras por um conjunto de sinais em torno do conceito de liberdade, que para mim é central em tudo que envolva a condição humana e a capacidade política de resolver problemas.

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Um exemplo didático é este trailer amador satirizando Maomé que, com versão em árabe e invadindo a internet, ganhou uma ressonância alucinada, completamente fora de qualquer senso de medida, e provocou reações de massa em dezenas de países, com depredações, atentados e mortes. Não há como inventar atenuantes a esta reação absurda, senão renunciando a aspectos cruciais da cultura moderna do mundo inteiro, e não apenas do Ocidente, como às vezes parece; imaginar que a extraordinária civilização muçulmana – com a presença histórica que teve na própria formação da Península Ibérica, de onde viemos – assine embaixo desta bárbara regressão medieval que, com volúpia, condena à morte quem quer que não comungue do mesmo dogma é simplificar demasiadamente o mundo de hoje. Imaginar que um sacerdote fanático de qualquer religião possa determinar a pauta mundial do que é ou não permitido, no Ocidente e no Oriente, e transferir à esfera política o que não passa de opção individual é um pesadelo teocrático que está voltando a se tornar realidade.

Sempre que se começa a discussão por se frisar a falta de qualidade do filmeco, ou por se perguntar (em voz baixa) da "conveniência" desta ou daquela charge sobre o profeta, ou ainda por se centrar no "respeito às crenças" ou outra abstração religiosa da esfera pessoal, o fanático está ganhando a batalha da liberdade. São sinais inquietantes, surgindo em toda parte, de que o espírito da liberdade está renunciando a si mesmo em nome de um "politicamente correto" universal e assustador, frequentemente totalitário, que determina o meu limite. A ânsia de controle e opressão, o pastoreio da inteligência e da imaginação e o horror à liberdade andam juntos. A condenação à morte de Salman Rushdie, que o mundo acabou por engolir com uma terrível naturalidade, parece pôr em prática o bordão da rainha de Alice no País das Maravilhas – por qualquer "dá cá aquela palha", o pequeno fanático grita "cortem-lhe a cabeça!"

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Este macabro culto à morte não chegou aqui, imagino. Mas alguns sinais da vida cultural brasileira parecem indicar que nossa renúncia vem se consolidando com firmeza: a proibição sistemática de biografias, a cruzada estúpida contra os livros de Monteiro Lobato, as liminares indignadas de juízes contra a veiculação disso ou daquilo na internet – em suma, todas as manifestações miúdas de um horror jacobino à liberdade. Que Deus, o Clemente, o Misericordioso, nos proteja.