Governadores têm ameaçado endurecer medidas para evitar que as pessoas saiam de casa durante a pandemia do novo coronavírus. A detenção por descumprimento de quarentena foi cogitada, por exemplo, pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB).
Mas o anúncio, além de despertar acirradas discussões jurídicas, leva a população a questionar se existe amparo legal para que essas medidas punitivas sejam aplicadas a quem circular na rua e outros espaços.
No dia 6 de fevereiro, o governo federal sancionou a Lei n° 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas de enfrentamento ao coronavírus no país e, entre outras coisas, salienta a diferença entre os termos "isolamento" e "quarentena": "I - isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus; e II - quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus".
Em março, uma portaria interministerial do Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça e Segurança Pública afirmava que, na hipótese de autoridades adotarem medidas emergenciais como as previstas na Lei n° 13.979/2020, a população deveria sujeitar-se ao seu cumprimento de forma "voluntária". Segundo a norma, o descumprimento deliberado de isolamento de infectados ou o negar-se, nos casos determinados compulsoriamente, a realizar exames médicos, testes laboratoriais, ou tratamentos médicos específicos poderá sujeitar o infrator às sanções previstas nos artigos 268 e 330 do Código Penal.
O artigo 268 do Código Penal estabelece detenção e multa para quem "infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa". O infrator pode receber como pena até um ano de detenção e multa. Há agravante, além disso, se o agente infrator é funcionário de saúde pública, médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.
E ainda: "Desobedecer a ordem legal de funcionário público: pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa", prevê o artigo 330 do Código Penal.
"O ápice dessas legislações está direcionado para o isolamento total do grupo de risco e das pessoas que estejam com sintomas da Covid-19 e as que já testaram positivo - que deverão se manter isoladas pelo período de no mínimo 14 dias -, sem qualquer contato, sob pena de disseminação do vírus", explica a advogada especialista em Direito Penal Mariana Cantú.
Detenção
Além das determinações do Executivo federal, estados e municípios passaram a editar decretos "aos montes", nas palavras de Mariana, com o propósito de regulamentar a quarentena. Em estados como São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, pessoas sem sintomas de infecção foram detidas por estarem caminhando na praia, rua ou praças.
Leonardo Pantaleão, advogado, professor e escritor, com mestrado em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), explica por que isso é possível. "O governador tem atribuições que, não necessariamente, vão conflitar com atribuições do prefeito, pois a visão dele é um pouco mais macro. Dentro das suas respectivas atribuições, eles podem deliberar o que bem entenderem", diz.
"É claro que o recomendável é que haja harmonia, consenso, entre esses decretos, mas não há esse grau de hierarquia dentro da área da administração. Quando o nosso legislador criou o artigo penal 268, ele não fixou que só praticaria crime se houvesse descumprimento de uma determinação do poder público federal. Ele fala em 'poder público', que pode ser tanto do âmbito municipal, estadual ou federal".
"O que pode ser discutido é o eventual conteúdo desses decretos. Poder elaborar decretos, não significa restringir ou ferir direitos garantidos constitucionalmente", explica Pantaleão. Segundo o especialista, apenas em situações como "estado de sítio" haveria possibilidade de maior restrição desses direitos.
"Um estado de calamidade pública não permite decretações de restrição de liberdade de locomoção".
Já a advogada Mariana Cantú entende que em contextos como o que vivemos, a atual pandemia, a liberdade de "ir e vir", garantida no artigo 5º da Constituição Federal, estaria passível de relativização.
Dolo
Há um outro enquadramento possível em se tratando de doença contagiosa. Em seu artigo 267, o Código Penal prevê reclusão de dez a quinze anos a quem se colocar como "agente de risco" e "causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos". E ainda "se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro".
"Se a pessoa sabe que está infectada e não obedece ao isolamento, uma segunda pessoa poderia processá-la, até com enquadramento penal", explica Mérces da Silva Nunes, especialista em Direito Médico e sócia do Silva Nunes Advogados. "Ela faria não só o processo de reparação de danos, na área civil, mas poderia fazer a denúncia para a própria autoridade policial o que poderia enquadrá-la no que prevê o artigo 267".
Pantaleão, da PUC-SP, no entanto, lembra que é necessário provar que o infrator tinha a intenção de contagiar outros com a doença. "O indivíduo que, por negligência ou imprudência, acaba descumprindo o decreto, não incorre nessa prática. Esse crime só alcança condutas intencionais", diz. "Se alguém entende que eu estou descumprindo o decreto de forma deliberada, essa pessoa, seja a Polícia Militar, o Ministério Público, é que tem que provar que eu estava infringindo de maneira intencional. O ônus da prova é de quem acusa".
Alguns especialistas, incluindo Pantaleão, afirmam que medidas administrativas, como multas, têm maior eficácia, em casos como esse. "Nesse ponto, o Direito Penal acaba não sendo um instrumento forte de coerção para que haja descumprimento. Entendo que medidas administrativas como multas elevadas pelo descumprimento das regras determinadas seriam muito mais rápidas pelo seu poder de intimidação", avalia.
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